1 Introdução à disciplina História do Contestado - Nilson Thomé
Fundamentos - A importância da História – Identidade Regional – Plano de Ensino
1. 1 Apresentação
Pergunta-se: Por que a denominação Universidade do Contestado? Por que o Curso de História na UnC? Por que a disciplina História do Contestado? Por que estudar o Homem do Contestado? Para que conhecer o Contestado?
Ora, já está mais do que na hora de a sociedade catarinense assumir com honra e orgulho, concretamente, a História do Contestado, integrando-a em seus estudos e a valorizando no contexto historiográfico como o nosso passado merece. Para isto, primeiro, nossa gente precisa perder a vergonha que ainda demonstra ter pela Guerra do Contestado e, só a perderá se conhecer melhor os fatos e puder refletir profundamente sobre eles.
O Resgate da Memória do Contestado, teve início como projeto em 1974, dentro da Universidade do Contestado, quando esta ainda era uma faculdade de uma pequena fundação educacional de Caçador – a FEARPE – e, dela, nunca se desvinculou.
Quando da elaboração da Carta Consulta ao Conselho Federal de Educação - CFE, visando à autorização de funcionamento de uma universidade no Centro-Oeste de Santa Catarina, a partir da união dos centros de ensino superior das cinco fundações educacionais que se associaram para este empreendimento foi aceita a proposição de ela vir a ser denominada "Universidade do Contestado". Mas a inserção do vocábulo “Contestado” no mundo acadêmico regional não ficou apenas nisto. Em seguida, objetivando atender ao requisito do número mínimo de cursos da área fundamental do conhecimento humano na Instituição projetada, surgiu a necessidade de incluir, no seu planejamento para o decênio 1991-2000, a proposta para a imediata criação do Curso de História, com ênfase para o regional. Acolhido o documento pelo CFE, de então até 1992, quando da elaboração do Projeto de Autorização de Funcionamento da Universidade do Contestado, também apareceu a necessidade de incluir a História do Contestado como disciplina básica, comum nas grades curriculares de todos os cursos oferecidos em todos os campi da UnC. No início de 1992, a Instituição recebeu autorização do MEC, com o nome de Universidade do Contestado, abrindo o Curso de História - Bacharelado e Licenciatura Plena - e incluindo a disciplina História do Contestado em todos os seus cursos superiores.
Acreditou a UnC que, assim, a sociedade regional teria mais fácil acesso à gama de informações e ao conhecimento que aqui se vinha acumulando ano após ano e iria valorizar sobremaneira o seu próprio passado, até então praticamente desconhecido pelos novos habitantes do Centro-Oeste, encontrando (ou reencontrando) sua identidade. A idéia compreendia provocar questionamentos sobre o passado, induzindo as novas gerações à reflexão radical e crítica, pois, só a partir da apreensão do acervo histórico e da busca de respostas para as problemáticas levantadas, a sociedade poderia entender melhor as situações presentes, vindo a assumir seu papel de agente continuador de uma História em permanente construção.
Produzindo História, e incentivando-a nos fóruns universitário e popular, acredita-se estar contribuindo para o reconhecimento público de que a Guerra do Contestado foi o fato mais genuíno e marcante da história regional, o mais sangrento do Sul do Brasil e o mais importante movimento messiânico do País pela sua complexidade. Foi um marco para Santa Catarina, fixado no centro da história da região. Com relação ao período 1913-1916, interpretamos as formas distintas do pré-Contestado e do pós-Contestado para clarear, apenas didaticamente, as ligações existentes entre causas e efeitos, ou seja, os acontecimentos de antes e depois deste marco caracterizador.
Caracterizamos a História do Contestado, em sentido mais amplo, e a História da Guerra do Contestado, mais restrita, esta, entendida como a insurreição do catarinense [...]. Como evento complexo, este conflito eclodiu coincidentemente em tempo e espaço, na junção de motivações sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais, não podendo mais ser analisado e discutido sob um único prisma ou tomado isoladamente por apenas um destes fatores (THOMÉ, 2004, p. 43).
Em História Sincera da República, Leoncio Basbaum inicia sua obra afirmando que “o objetivo da História não é apenas o de narrar e constatar fatos do passado, mas buscar as suas origens e as suas conseqüências” (1957, p. 3). Tratando da categoria da interpretação, para Basbaum, em História, não existe causa única para um fato. Entendendo que a História não é uma simples sucessão de causa e efeito, ele cita Zdanov para registrar que a análise histórica não é uma simples enumeração de alguns fatos expostos sem ligações uns com os outros e simplesmente justapostos.
Na verdade são em geral múltiplas as causas determinantes, agindo em conjunto e ao mesmo tempo umas sobre as obras. Por outro lado, não somente o passado determina o presente. Há na realidade um permanente fluxo entre as várias causas simultâneas, entre os efeitos e as causas, entre o passado e o presente (ZDANOV apud BASBAUM, 1957, p. 5).
José Honório Rodrigues escreveu em História e Historiadores do Brasil, que a História não é dos mortos, mas dos vivos, como uma realidade presente, obrigatória para a consciência. Tratando da historiografia universal, ao lembrar que a arte da História consiste em manter sempre viva a conexão entre os que contemplam o passado e os que contemplam o presente, afirmou que a História precisa olhar a floresta e não apenas as árvores, oferecendo uma interpretação generalizadora que ajude os vivos a compreender as raízes do presente (1965, p. 14). Qualquer povo só constitui uma sociedade humana se tem uma história para poder perpetuar a sua identidade, preservar seus traços culturais e cultivar suas tradições. A história de um lugar qualquer só é compreendida a partir da fixação nele de uma sociedade organizada que, por diversos feitos, modifica a realidade. A ação dos homens sobre a natureza, suas relações e as transformações provocadas, constituem o conjunto de fatos que marcam, no decurso do tempo, a História desta civilização.
A História, como ciência, viabiliza questionamentos e respostas aos anseios populares de melhor compreender o passado, a partir de abordagens a problemas, incluindo testemunhos e questionamentos, a provocar sentimentos de amor, carinho, apreço, respeito e consideração ao que foi construído, ou de desapontamento, raiva, rancor e até de ódio àqueles que construíram.
As futuras gerações somente valorizarão o patrimônio histórico-cultural do Contestado se lhes forem dadas, desde já, suficientes informações sobre o que aconteceu no passado, para originar o conhecimento daquilo que ora nos está disponível. Nada permanece igual e é através do tempo que se percebem as mudanças. O tempo é a dimensão de análise da História. Os tempos históricos não são necessariamente cronológicos, variando no espaço de um grupo social para outro. Somente se saberá o passado de um povo se observarmos o processo histórico das relações dos homens entre si e destes com a natureza transformada. Se desconhecer o que o destino lhe traça para o futuro é um problema, desconhecer o que se passou e quais foram as reações ante as transformações também é um problema. Não há como um cidadão atual problematizar uma realidade concreta, se não souber o que a gerou e como foi gerada.
1. 2 Considerações iniciais
A dualidade eleita como objeto de nossos estudos leva-nos a dividir o trabalho em três partes. Nas duas primeiras, a configuração da formação do território livre do Contestado e da formação do homem (caboclo) que veio habitar este espaço desde os tempos mais remotos, adentrando na Primeira República, com abordagem que transpassa a transmissão do século XIX para o XX. A terceira é dedicada ao momento da ruptura, forçada pelo imperialismo, que decide limpar o espaço pela extinção do homem do Contestado e mudar a forma de ocupação do território, adicionando a nova ordem, capitalista, pela introdução com força de novo elemento, o imigrante. Reservamos a análise da história do movimento do capital, desde a época do território livre até a colonização, para a conclusão, onde foi feita a investigação da totalidade deste movimento. Com a transição, a educação proporcionada pela escola passa a ser item importante, mas objetivando a alfabetização e os conhecimentos gerais, quase só dos filhos dos imigrantes, ou seja, sem finalidade de formação profissional.
Articulamos as categorias de ocupação, colonização, imigração e povoamento. Os itens principais da nossa tese sobre o homem do Contestado não podem deixar de ser o espaço geográfico, a ocupação e o uso do espaço, a formação do território, as redes viárias, fluviais e ferroviárias, a cultura e formação comunitária e a educação. Estes, também, formam os objetivos específicos da dinâmica da investigação. C. Reffestin (1980, p. 81) considera que o termo território não é idêntico ao conceito de espaço. Este é anterior àquele. O território se forma a partir do espaço mediante a ação coordenada dos homens. O território do Contestado é resultado das redes de transporte; é resultado da colonização e da urbanização. Não se deve confundir os termos aqui usados de “território livre” ou de “espaço livre” com “vazio”, “desocupado” ou “desabitado”, estes que têm outro significado (Cfme.SANTOS, 1978, p. 80-83).
No começo, enfocaremos a formação do Território Contestado, a partir do espaço livre desta área. O período histórico não tem preocupações com o estabelecimento de limitações de início, pois que aborda os indígenas e os negros e remonta à introdução do sujeito tido simplesmente como “branco” na área. Vem pelo tempo da Colônia, passa pelo Império e adentra na República Velha, praticamente sem escolas, para chegar aos momentos primeiros da fase de “modernização”, que se opõe à sociedade tradicional agrária, preparando o território para a sociedade moderna, industrial e urbana.
Para a comunidade cabocla, as relações sociais constituíram-se dentro de um espaço livre ou num mundo livre – “livre”, de liberdade, não de vazio – ou ainda um espaço do qual o caboclo se apropriou, atuou e o fez à sua imagem e semelhança. Ao se apropriar do espaço geográfico, os homens começaram a territorializá-lo, incorporando, de outras regiões, formas de pensar, viver e produzir, além da maneira de alimentar-se, divertir-se e produzir a vida material e não material.
Neste espaço que se convertia em território, nascia, também, a relação do poder, das normas e leis próprias da convivência. O estudo sobre a formação do homem do Contestado leva em consideração esta transformação do espaço geográfico em território; logo, considera as relações históricas de poder, dominação e controle, mitigadas na fase do homem primitivo e exacerbadas na Guerra do Contestado. Neste ponto, tomamos Lênin, quando disserta sobre a atuação do Estado. Por isso, reafirmamos: a tese passa pelas categorias: ocupação do espaço, uso da terra, formação do território, poder, controle, cultura e educação e suas funções na formação do homem.
O acompanhamento do processo de incorporação da Região do Contestado ao mercado inicia com a idéia de que o território livre é assim denominado porque nele não se sentiam as leis, o controle e a opressão do Estado e nele não se sentia a mão pesada do fazendeiro. O território forma-se a partir do estabelecimento de redes viárias, ferroviárias e fluviais, que se tornam o elemento importante de acesso, circulação e normalização de usos, atitudes e comportamentos sobre este espaço. Temos que “cada homem vale pelo lugar onde ele está; o seu valor como produtor, consumidor, cidadão dependente de sua localização no território [...] Por isso, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está” (SANTOS, 1978, p. 81).
Na fase anterior à Guerra do Contestado (1913-1916), o habitante vivia num território com redes viárias feitas pelo Estado, mas o caboclo não via o poder estatal como opressor e que intervinha na sua forma de pensar, ser, conviver e produzir. O poder e o controle do Estado estava visível nos fazendeiros do território, posto que estes viviam fora do “território livre” dos caboclos.
As diferenças entre a vida familiar do fazendeiro e do caboclo: presença/ausência do poder público (poder, controle, domínio); pensamento divergente de religiosidade institucional/popular; poder econômico e relações com o mercado/sobrevivência, formação comunitária/educação escolar; leis e punições de convivência e insegurança/leis estatais com relativa segurança. Essas diferenças econômicas, sociais e de cidadania, entretanto, não impediam uma relação mútua de interdependência entre as duas partes, às vezes harmoniosa, outras vezes opressora.
O meio do nosso estudo é dedicado à ruptura – o momento em que ocorre a Guerra do Contestado. Coincide com a I Guerra Mundial. Uma nova roupagem do capitalismo – monopolista e imperialista – adentra com força no Contestado. A ruptura é social e cultural. No sentido em que, ao olhar do opressor, uma determinada população (a cabocla, luso-brasileira, que não presta), é fadada ao desaparecimento, para viabilizar sua substituição por outra (de imigrantes, colonos, trabalhadores), dos primeiros restando alguns sobreviventes. A limpeza da área foi radical. Foi uma guerra de extermínio.
O rompimento das relações antigas de um espaço geográfico amplo e de um território livre deu-se quando os caboclos tiveram que conviver com a modernização do território, mediante a ação firme e resoluta do Estado intervencionista (brasileiro, paranaense e catarinense) e de investimentos de capitais estrangeiros (presença do Imperialismo no coração do território livre).
O caboclo cinde-se como ser humano. A divisão se manifesta através da intervenção do poder monopolista, amparado pelo Estado, pelo poderio econômico e pelos fazendeiros. A construção da ferrovia, as madeireiras e a colonização estrangeira modificam as relações sociais da comunidade cabocla com os invasores de seu território livre. O rompimento do mundo livre (a terra, a vida e a irmandade) para um mundo de opressão, que começa com a pilhagem de suas terras e de seu território e termina com a intervenção sanguinária do braço armado de civis e militares, passando pelo controle do poder político, do deslocamento dos direitos individuais para a opressão do Estado, do deslocamento de idéias e vida próprias ao território livre para idéias e forças que vinham de fora e se instalaram como forças armadas no espaço dos caboclos, espaço reconhecido pela Lei de terras de 1850.
A partir da conquista armada e da modernização feitas pelo poder estatal e monopolista, o caboclo foi afastado do desenvolvimento, passando os benefícios do progresso para os fazendeiros e, posteriormente, para os colonizadores. No fundo, o poder político controlava o progresso e o povo – como já o realizara antes nas diversas revoluções abafadas – com a idéia positivista de que somente os homens que superaram o estágio religioso e metafísico e atuam no estágio positivo, conseguem realizar o desenvolvimento e o progresso, nem que isso exigisse a guerra e a limpeza da área. Em outros termos, somente os homens do Estado, os do capital estrangeiro, os fazendeiros e os agricultores experientes da colonização conseguem o progresso. É um pensamento próprio à Velha República.
Assim, o pensamento religioso, popular e fanático do caboclo – fundamental para seu equilíbrio social – devia desaparecer com o extermínio dele próprio. A religiosidade institucional será vitoriosa quando se modifica o território, colocando ali os colonizadores do progresso. A formação arcaica da comunidade cabocla devia ser superada pela educação escolar dos filhos dos colonos, uma educação adaptada á sociedade burguesa.
A fase imperialista do capitalismo levou a sério, na Europa, Austrália, América do Norte e em alguns países da América do Sul, um sistema de ensino e de educação escolar para todas as populações. O capital estrangeiro, investido para que se desse a expansão do capitalismo na produção de excedentes nas matas convertidas em lavouras, não levou apenas a infra-estrutura de redes, madeireiras e colonizadores para o território, mas também, trouxe a idéia de uma educação escolar, importante para o grande projeto imobiliário de loteamento das terras outrora livres.
O homem do Contestado, primitivo, foi cindido pela guerra e substituído pelo homem colonizador, o homem-colono de um novo ambiente rural, produtor, que a seguir será o moderno, o industrialista, o urbano. Neste processo de expansão do capitalismo, a educação escolar vai se desenvolver timidamente em todo o Planalto Catarinense – agora “antigo” Território Contestado – que passamos a enfocar sub-dividido em quatro regiões homogêneas internamente: Planalto Norte, Zona de Campos, Zona do Rio do Peixe e Zona do Alto Uruguai.
1. 3 Objetivos
Objetivo Geral:
Proporcionar ao estudante mais fácil acesso à gama de informações e ao conhecimento histórico regional que vem se acumulando ano após ano, para valorizar o seu próprio passado, praticamente desconhecido pelos novos habitantes do Centro-Oeste, encontrando (ou reencontrando) sua identidade, através da provocação de questionamentos sobre o passado, induzindo as novas gerações à reflexão radical e crítica, pois, só a partir da apreensão do acervo histórico e da busca de respostas para as problemáticas levantadas, a sociedade poderá entender melhor as situações presentes, vindo a assumir seu papel de agente continuador de uma História em permanente construção.
Todos nós somos conscientes da importância do estudo da História vivenciada em nossa região, portanto a Universidade oferta para todos os cursos esta disciplina a distância, com os seguintes objetivos:
- Compreender de forma ampla a complexidade dos fatos que compõe até o presente a vida social da população do Meio-Oeste Catarinense;
- Conhecer os elementos do legado cultural do homem do contestado;
- Desenvolver atitudes científicas em relação à apropriação do conhecimento temporal e espacial da região do contestado;
- Identificar a identidade do homem do meio-oeste catarinense, a partir do processo de aculturação.
Objetivos Específicos:
- Proporcionar mais fácil acesso ao conhecimento de episódios marcantes da História do Contestado;
- Instrumentalizar a Educação pela divulgação de eventos caracterizadores da história regional;
- Viabilizar a transmissão do conhecimento sobre registros do passado do Contestado às atuais e futuras gerações;
- Valorizar os bens relacionados ao patrimônio histórico-cultural do Território Contestado e do Homem do Contestado;
- Ampliar a inserção do Contestado na historiografia catarinense e brasileira que trata das mentalidades, das idéias e das populações;
- Dinamizar a renovação de estudos sobre realidades ainda não suficientemente enfocadas, possibilitando novas interpretações;
- Promover novas discussões sobre a leitura e a releitura dos fatos históricos, a partir de revelações de acontecimentos até agora desconhecidos.
1. 4 Resumo da História Regional
Nossos trabalhos de pesquisa e de difusão da História do Contestado, desde 1970, nos quais esclarecemos qual o entendimento que temos do passado, seguem esta linha-do-tempo e linha-de-espaço:
a) - No Meio-Oeste, Planalto Central e Norte de Santa Catarina, entre os vales dos rios Canoinhas (a Leste) e do Peixe (a Oeste), com os rios Negro e Iguaçu ao Norte e o Rio Canoas e Campos Novos ao Sul, localiza-se a área que entre 1913 e 1916 foi cenário da Guerra do Contestado – a ruptura sócio-cultural e econômica – e, por isso, historicamente é identificada como Região do Contestado. Faz parte de área maior, o espaço que antigamente se estendia ao Extremo-Oeste, na fronteira com a Argentina (atuais Oeste Catarinense e Sudoeste Paranaense), que constituía o Território Livre do Contestado, assim conhecido até 1917, quando da solução da questão de limites entre Paraná e Santa Catarina.
b) - A linha (curso) da foz do Rio Canoinhas (no Rio Negro) às suas nascentes e destas às nascentes do Rio do Peixe até a sua foz (no Rio Uruguai) passou a ser considerada como “fronteira provisória” entre os estados litigantes em 1879. No final do século XIX e início do século XX, o Paraná administrou e promoveu a ocupação das terras do Planalto Norte e da margem direita do Rio do Peixe, pelos municípios de Rio Negro, Porto União da Vitória, Itaiópolis e Palmas, e Santa Catarina as terras da margem esquerda, pelos municípios de Lages, Curitibanos e Campos Novos, depois também por Canoinhas.
c) - Dentro da Floresta da Araucária, a região era praticamente desabitada, com suas vilas, povoados e fazendas ligados entre si por estreitos e sinuosos caminhos, abertos pelos tropeiros. Entendida como “geração cabocla”, parte da população havia chegado na primeira metade do século XIX, num processo de ocupação de terras livres, e outra parte chegou após 1850, quando a Lei de Terras viabilizou sua instalação em pequenas e médias propriedades, contrastando com o modelo anterior de sesmarias, que havia permitido o surgimento de grandes fazendas.
d) - Os criadores e lavradores luso-brasileiros vindos tanto de São Paulo e do Paraná, como do Rio Grande do Sul, mesclaram-se com os nativos índios Kaigang e Xokleng e com aqueles que haviam chegado antes, os negros escravos, os mamelucos (da mesclagem do branco com o índio), os cafusos (do cruzamento do negro com o índio) e os mulatos (mestiços do branco e do negro). Nesta época, chegaram também os primeiros eslavos, como resultado dos planos paulistas (até 1853) e paranaenses de imigração, principalmente alemães, holandeses, poloneses e ucranianos.
e) - Distante das suas duas “capitais” - Florianópolis de um lado e Curitiba de outro - a região teve vagaroso ritmo de desenvolvimento. Tanto no Contestado-catarinense como no Contestado-parananense o povo vivia em solidão, longe dos recursos que a modernidade proporcionava às pessoas dos centros maiores. As estradas não passavam de trilhas abertas a facão nas matas. A população não dispunha de pronto atendimento médico, odontológico, farmacêutico ou hospitalar. As escolas primárias eram raras. A autoridade era exercida por superintendentes municipais, juízes-de-paz, delegados de polícia e pelos fazendeiros-coronéis.
f) - A Igreja mantinha paróquias nas únicas cidades catarinenses existentes no início do século – Lages, Curitibanos, Campos Novos e Canoinhas – e nas paranaenses de Palmas, Rio Negro e Porto União da Vitória, com poucos padres atendendo os fiéis em demoradas viagens pelos sertões, sendo que, neste quadro, despontaram na região pessoas “diferentes”, peregrinas e eremitas, algumas consideradas “monges” pela população regional, algumas delas por se exercitarem como pregadoras e curandeiras, outras por se apresentarem como profetas, visionárias, charlatães ou fanáticas, enraizando nos caboclos uma forma de religião popular.
g) - As principais atividades econômicas no território livre resumiam-se em: extração da erva-mate, tropeirismo, lavouras de subsistência, criação de gado bovino e de suínos. Não existiam indústrias. O comércio restringia-se a pequenas “bodegas” nas margens de algumas estradas. Neste território livre, a partir do caboclo luso-brasileiro, formou-se o homem do Contestado. Este quadro não começou a se reverter a partir da abertura da EFSPRG, em 1910, como alguns podem pensar, mas, sim, após 1917, quando terminou a Guerra do Contestado e foi homologado o Acordo de Limites PR-SC, quando então a Cia. Estrada de Ferro iniciou as tentativas de implantação dos planos de colonização nas terras marginais aos trilhos e quando a Lumber Company entrou em plena operação.
h) – Depois da guerra de extermínio ao caboclo, o Estado de Santa Catarina encontrou muitas dificuldades para desencadear seu plano de povoamento nas terras que lhe foram anexadas por força do acordo, à vista da sobreposição de títulos sobre as glebas demarcadas e destinadas à colonização. Como grande parte dos imóveis havia tido a posse legitimada pelo Paraná, antes de 1916, tanto à Companhia EFSPRG como a fazendeiros e a especuladores paranaenses, as questões foram levadas aos tribunais. O Governo Catarinense perdeu todas as ações judiciais movidas contra a Cia. Estrada de Ferro São Paulo Rio-Grande, esta que, a partir de 1924, intensificou o plano de colonização.
i) - O Governo de Santa Catarina escolheu como seu sistema de ocupação e de colonização do Território Contestado a cessão de imensas glebas a particulares, preferencialmente àqueles que compartilhavam o poder político e se propunham à abertura de estradas, titulando-lhes, em parte, as mesmas terras que o Paraná havia concedido à EFSPRG. Neste momento do florescer do imperialismo, as ligações rodoviárias foram eleitas como de fundamental importância para a integração catarinense.
j) - Efetivamente, o desenvolvimento econômico na Região do Contestado, nos moldes capitalistas começou a expandir-se quando da chegada das primeiras levas de alemães, italianos, poloneses e ucranianos, e de descendentes de imigrantes, na maioria ítalo-brasileiros e teuto-brasileiros, que vieram tanto para explorar a floresta, em latifúndios, implantando a indústria da madeira, como para trabalhar na agricultura, em minifúndios. Entre outros resultados, pelo lado dos imigrantes, a partir da década de 20 sobressaíram-se a indústria madeireira e o modelo agrícola minifundiário e policultor, que gerou a agro-indústria. A par disso, o primitivo caboclo foi mantido marginalizado, quase que excluído da nova sociedade.
k) - As propriedades destinadas à colonização por imigrantes foram divididas em colônias e, em pouco tempo, os núcleos coloniais transformaram-se em povoados. No Setor Ocidental da Região do Contestado, ao longo do Vale do Rio do Peixe, estes núcleos, mais os antigos arraiais, prosperaram, com o que surgiram novas vilas.
l) A linha de tempo-e-espaço da História Regional do Contestado continua, a partir daqui, enfocando que algumas das primeiras vilas foram logo elevadas à categoria de cidades, como Caçador, Videira, Tangará, Capinzal, Piratuba, num primeiro momento, e Rio das Antas, Pinheiro Preto, Ibicaré, Treze Tílias, Lacerdópolis, Ouro e Ipira, logo em seguida. Destes, mais tarde, nasceram Macieira, Salto Veloso, Arroio Trinta, Luzerna, Iomerê e Jaborá. No Alto Uruguai despontou Concórdia, do qual também originaram-se os municípios de Presidente Castelo Branco, Lindóia do Sul, Ipumirim, Arabutã e Alto Bela Vista. Em áreas pouco contempladas com projetos de colonização, nos antigos Campos de Palmas-de-Baixo prosperaram as cidades de Água Doce, Catanduvas, Irani e Ponte Serrada. Matos Costa surgiu nos antigos Campos de São João, e Calmon nos Campos de São Roque. Fraiburgo originar-se-ia na área do Campo da Dúvida, Taquaruçu e Butiá Verde, enquanto que Lebon Régis, Santa Cecília e Timbó Grande foram as primeiras cidades na Serra do Espigão. O Município de Campos Novos logo cedeu terrenos também para a formação dos municípios de Herval d’Oeste, Erval Velho e Monte Carlo. Em seguida, para Brunópolis, Vargem, Abdon Batista, Zortea e Ibiam. Por sua vez, Curitibanos manteve a integridade territorial por muitos anos, até que cedeu terras para Correia Pinto e Ponte Alta, depois para São Cristóvão do Sul, Ponte Alta da Norte e Frei Rogério. Completando o desenvolvimento municipal na Região do Contestado, temos que, no Planalto Norte, desmembrados de Porto União, Canoinhas e Mafra, surgiram os municípios de Três Barras, Irineópolis, Papanduva, Major Vieira, Monte Castelo e Bela Vista do Toldo.
1. 5 Leituras sugeridas na disciplina - Referências
Prioridades:
AURAS, Marli. A Guerra Sertaneja do Contestado: Organização da Irmandade Cabocla. 3 ed. Florianópolis: UFSC, 1997.
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1979.
EHLKE, Cyro. A Conquista do Planalto Catarinense. Rio: Laudes, 1973.
GALLO, Ivone Cecília D’Avila. O Contestado. O Sonho do Milênio Igualitário. Campinas: ED. Unicamp, 1999.
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século; um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. Série Universidade 2. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina: sua História. Florianópolis: UFSC/Lunardelli, 1983.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e Conflito Social. A Guerra Sertaneja do Contestado. Ensaios 23. 3. ed.. São Paulo: Ática, 1981.
SACHET, Celestino. SACHET, Sérgio. O Contestado. Florianópolis: Século Catarinense, 2001.
STULZER, Aurélio. A Guerra dos Fanáticos (1912-1916); A Contribuição dos Franciscanos. Vila Velha: (s. ed.), 1982.
TOKARSKI, Fernando. Cronografia do Contestado. Florianópolis: IOESC, 2002.
THOMÉ, Nilson. Os Iluminados. Personagens e Manifestações Místicas e Messiânicas do Contestado. Florianópolis: Insular, 1999.
______. Trem de Ferro – A Ferrovia no Contestado. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1983.
______. Sangue, Suor e Lágrimas no Chão Contestado. Caçador: UnC, 1992.
______. Civilizações Primitivas do Contestado. Caçador: Universal, 1981.
______. Primeira História da Educação Escolar na Região do Contestado. Caçador: UnC, 2002.
______. A Política no Contestado. Do Curral da Fazenda ao Pátio da Fábrica. Caçador: UnC, 2002.
______. Uma nova História para o Contestado. Caçador: UnC/Museu do Contestado, 2004.
______. Breve História da Guerra do Contestado. Caçador: UnC / Museu do Contestado, 2005.
______ Ciclo da Madeira. História da Devastação da Floresta da Araucária e do Desenvolvimento da Indústria da Madeira em Caçador e na Região do Contestado no Século XX. Caçador: Universal, 1995.
Leituras complementares
ALMEIDA, Vitor. Capinzal: jóias desta terra e desta gente. Joaçaba: Ed. Unoesc, 2204.
BREVES, Wenceslao de Souza. O Chapecó que eu Conheci. In: Boletim do IHGSC, n. 6, 1985. Florianópolis: IHGSC, 1985.
BLASI, Paulo. Campos Novos: um pouco de sua História. Florianópolis: Edeme,1994.
CARVALHO, Setembrino de. A Pacificação do Contestado. Relatório ao Clube Militar. Rio, Clube Militar, 1916.
COSTA, Licurgo. Um Cambalacho Político. A verdade sobre o “acordo” de Limites Paraná-Santa Catarina. Florianópolis: Lunardelli, 1987.
CARNEIRO, Delci Maria Klieman. ZANETE, Dilce Maria. ZONTA, Solange. Conhecendo Porto União. Porto União: Prefeitura, 1991.
COSTA, Licurgo. O Continente das Lages. v. I e II. Florianópolis: FCC, 1982.
FELIPPE, Euclides F. O Último Jagunço - Folclore na História da Guerra do Contestado. Passo Fundo/Curitibanos: Berthier/UnC, 1995.
FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: O Rastro de sua História. Concórdia: Fundação Cultural, 1992.
HEINSFELD, Adelar. A Questão de Palmas entre Brasil e Argentina e o Início da Colonização Alemã no Baixo Vale do Rio do Peixe-SC. Joaçaba: Unoesc, 1996.
LAZIER, Hermógenes. Origem de Porto União da Vitória. Porto União: Uniporto, 1985.
LEMOS, Zélia de Andrade. Curitibanos na História do Contestado. Florianópolis: Governo do Estado, 1977.
LUZ, Aujor Ávila da. Os Fanáticos; crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos. Florianópolis: (s. ed.), 1952.
POLI, Jaci. Caboclo: Pioneirismo e Marginalização. In: Para uma História do Oeste Catarinense. Chapecó: UNOESC, 1995.
RADIN, José Carlos. Italianos e Ítalo-Brasileiros na Colonização do Oeste Catarinense. Joaçaba: Unoesc, 1997.
SCAPIN, Alzira. Videira nos Caminhos de Sua História. V. 1. Videira: Prefeitura, 1997.
SILVA, José Waldomiro. O Oeste Catarinense. Memórias de um Pioneiro. Florianópolis: ed. autor, 1987.
VALENTINI, Delmir José. Da Cidade Santa à Corte Celeste: Memórias de Sertanejos e a Guerra. Caçador -1998
WACHOWICZ, Ruy Christovam. Paraná, Sudoeste: Ocupação e Colonização. Estante Paranista 21. Curitiba: Lítero-Técnica, 1985.
THOMÉ, Nilson. História da Imigração Italiana em Caçador – 1918-1950. 2 ed. revisada e ampliada. Caçador: Prefeitura, 1993.
______. Pioneirismo da Imigração Alemã, em Santa Catarina, na Região do Contestado. Caçador; UnC, 2004.
2 A formação do homem do Contestado no espaço livre
Origens – O luso-brasileiro – Os indígenas – O negro – O caboclo pardo
2. 1 As Civilizações Primitivas do Contestado
Em períodos entre vinte e dez mil anos atrás, o ser humano “moderno”, descendente do homo sapiens, chegou ao continente americano, em levas sucessivas originárias de outros continentes, principalmente da Ásia e, possivelmente, da Austrália. Pelos Andes, fizeram a rota Norte-Sul e em seguida adentraram na floresta amazônica, no chaco-pantanal e no planalto brasileiro.
O homem teria adentrado à área que hoje corresponde ao Sul do Brasil por volta de seis a oito mil anos antes de Cristo, após o último degelo conhecido da crosta terrestre, quando a conformação geológica se revelou bastante parecida com a atual.
Nossos estudos em antropologia e arqueologia induzem-nos a crer que os primeiros humanos a alcançar o Território Contestado aqui chegaram entre 8.000 aC e 6.000 aC. Eles seriam integrantes da civilização da idade-da-pedra conhecida por Tiwanaku, muito anterior aos Incas, originária do altiplano da Cordilheira dos Antes, quando povoavam as proximidades do Lago Titikaka, hoje Bolívia. Teriam aberto o “Caminho de Peabirú-Sudeste”, para alcançar as terras baixas orientais e o Oceano Atlântico, na altura da Ilha de São Francisco do Sul. Deixaram seus vestígios de pedra nos morros do Timbó, na Serra do Espigão, no centro do Contestado.
Depois, o Contestado foi habitado por outras quatro importantes civilizações conhecidas também em outras partes do Cone Sul; as pré-ceramistas Umbú e Itararé ou Humaitá (pedras lascada e polida), e as ceramistas Taquara e Guarani (cerâmica lisa e decorada). Entre 5.000 aC e o tempo próximo ao Descobrimento do Brasil, deixaram seus vestígios em galerias subterrâneas, casas subterrâneas, sepultamentos, e locais-oficinas.
Todos estes grupos humanos primitivos teriam desaparecido completamente. Porém, existem correntes que entendem que parte dos índios conhecidos seriam descendentes de algumas dessas civilizações
2. 2 O Homem no Contestado a partir do Tempo do Descobrimento
Inserido na Floresta da Araucária, nas regiões de matas e de campos, o Contestado era território indígena dos Gê, representados pelos Kaingang e Xokleng, tradicionais rivais dos Guarani que se localizavam mais a Ocidente, em terras espanholas, e dos Carijó, habitantes do Litoral. Conheciam-nos apenas os bandeirantes paulistas que os encontravam nas suas expedições para o Sul. Gradativamente, primeiro às centenas e, em seguida, em alguns milhares, estes paulistas penetradores, na maioria mamelucos, passaram a habitar também o Território Contestado. Parte deles manteve contato com o índio domesticado, o Kaigang. Simultaneamente, gaúchos dos pampas também misturaram-se com os Guarani e com os Kaigang, vindo a conhecer, no Século XIX, o Território Contestado.
Então, foi desta forma que portugueses, paulistas-mamelucos, espanhóis-castelhanos, gaúchos-mamelucos e índios, além de negros, mulatos, cafuzos e alguns imigrantes europeus, constituíram a primeira grande população do Planalto Central Catarinense, compondo um quadro étnico que só veio a sofrer substancial modificação após a Guerra do Contestado, no advento da colonização com novos imigrantes europeus e seus descendentes.
Interessa-nos saber algo sobre a formação do homem do Contestado, a partir das suas origens e dos seus grupos étnicos formadores.
2. 3 A contribuição do homem branco luso-brasileiro
Desde a época da Governadoria-Geral do Brasil, os portugueses aproveitaram para se consolidar na costa brasileira e avançar para o Oeste, utilizando o sistema agrário das sesmarias, uma herança do tempo das capitanias hereditárias. A atividade pastoril, forma inicial do povoamento do sertão brasileiro, realizou-se por meio de concessões de terras em sesmarias e sua distribuição foi motivada pela necessidade da criação extensiva de gado. Eram “datas” de enormes proporções, geralmente muito maiores que as sesmarias do litoral, o que se justificava diante da necessidade de amplas áreas de pastagens. A pecuária representou uma das mais importantes atividades para a ocupação e o desbravamento das diversas regiões do Brasil.
O BRANCO NO CONTESTADO MERIDIONAL
A abertura de um “caminho real”, para ligar a Colônia do Sacramento (antiga possessão portuguesa no Extremo-Sudoeste do Uruguai) e os Campos de Viamão, a São Paulo, pelo interior do continente, foi o marco referencial do início do desbravamento e da ocupação do Planalto de Santa Catarina.
Esta “Estrada Real”, ligando o Extremo-Sul ao Sudeste do Brasil pelo interior, representou o início da prosperidade para algumas regiões ao longo da sua extensão. Durante cerca de cem anos, esta Estrada Real registrou intenso movimento de tropeiros que passaram a adquiri-los de estanceiros que por lá se estabeleceram, justamente para a exploração das reses. E quando a disponibilidade de muares e de gado diminuiu no Viamão, no Jacuí e em Vacaria, restando em abundância nas bandas do Rio Uruguai, foi preciso aos tropeiros buscá-los na região então conhecida como Missões. A mudança de local da fonte abastecedora provocou a abertura de outros caminhos, mais a Oeste da Estrada Real. Com isso, o movimento em sua extensão foi reduzindo gradativamente, provocando o declínio da até então prosperidade nos povoados à sua margem.
Ao assumir a Capitania de São Paulo, Morgado de Mateus planejou consolidar a presença dos portugueses no Extremo-Sul da sua jurisdição, também no ponto que alcançava o Rio Pelotas. Em 1766, confiou ao sertanista, Guarda-Mor Antonio Correa Pinto de Macedo, a tarefa de fundar uma povoação nas chapadas da Vaccaria, na parte Sul dos campos das Lagens, onde ele já tinha fazendas, persuadindo-o a convocar moradores e índios destas paragens para se fixarem nas margens do Rio Pelotas ou do Rio Canoas.
Foi na condição de posseiros que se estabeleceram alguns tropeiros e fazendeiros, uns portugueses e outros luso-brasileiros, nesta área bem ao Sul dos “Sertões de Curitiba”, nos ainda pouco habitados Campos de Lages. Na caravana de Correa Pinto, estavam muitos luso-brasileiros e mamelucos (estes também chamados de “brasilíndios”). A fundação oficial da vila aconteceu a 22 de maio de 1771, quando possuía cerca de 400 habitantes, já abertas algumas ruas e construídas casas.
Historicamente, luso-brasileiro é considerado aquele homem nascido no Brasil, que tenha ascendência portuguesa. Consta nas informações do sistema wikipédia (web), que os portugueses constituíram a parte da população mais significativa na criação do Brasil. Devido à falta de organização das organizações luso-brasileiros, não há estimativas sobre o número de descendentes de imigrantes portugueses no Brasil disponíveis. É notório, porém, que há mais de 25 milhões de luso-brasileiros descendentes dos cerca de 1,5 milhão de portugueses que chegaram ao Brasil após 1850. Muitos outros milhões de brasileiros possuem origens portuguesas que remontam aos centenas de milhares de colonos vindos de Portugal que se fixaram no País desde o Século XVI, asm, estes últimos, em sua grande maioria, sabem muito pouco sobre suas origens.
A Revolução Farroupilha complicou a vida no Planalto Serrano Catarinense logo depois de 1835, quando a bandeira dos revoltosos foi desfraldada no Rio Grande do Sul, fazendo com que a Província de São Paulo praticamente fechasse as fronteiras com o Estado sulino, proibindo em boa parte o transporte de gado bovino e eqüino da Província do Rio Grande do Sul pela Estrada das Tropas, assim impedindo os rendosos negócios dos tropeiros que demandavam a Sorocaba. A medida provocou impacto tal que, imediatamente, verificou-se a decadência do movimento comercial na Vila de Lages, nos povoados, nos pousos e nos currais ao longo da Estrada das Tropas.
Como a economia rural predominava sobre os destinos do Planalto Serrano Catarinense, na segunda metade do Século XIX outro acontecimento veio a prejudicar os negócios ao longo da Estrada das Tropas, da Estrada das Missões e de suas Veredas, atingindo em cheio os campos de Lages, Curitibanos e Campos Novos. Ocorreu no Rio Grande do Sul que a indústria do charque passou a se expandir e a absorver intensamente a produção de gado bovino das suas estâncias. Os fazendeiros gaúchos deixaram de criar cavalos e mulas e, desinteressaram-se pelo tropeirismo, concentrando suas atividades só na mais lucrativa criação de gado, para fornecimento às charqueadas, na maioria, localizadas no Sul e Sudeste do Estado sulino, de onde a carne salgada era exportada. O reflexo em Santa Catarina foi imediato. Nossos criatórios, distantes das maiores charqueadas e dos portos de embarque - também em Laguna - tinham dificuldade nas vendas, pois, com o transporte, seus custos eram mais elevados, tanto para o gado em pé como para o charque. O movimento no trecho catarinense, entre os registros dos rios Pelotas ou Uruguai e dos rios Negro ou Iguaçu, caiu consideravelmente. Anos depois – entre 1870 e 1880 – foi a vez da estrada-de-ferro acabar com a até então concorrida Feira de Sorocaba, para onde convergiam os negócios dos tropeiros
O BRANCO NO CONTESTADO SETENTRIONAL
O setor setentrional do Território Contestado, compreendendo os cursos dos rios Paciência e Timbó, afluentes da margem esquerda do Rio Iguaçu, bem como as terras altas da Serra do Espigão, onde estão suas nascentes, foram explorados oficialmente pela primeira vez em 1768, época em que esta parte do Sul do Brasil constituía a Capitania de São Paulo.
Curiosamente, estas terras da margem esquerda dos rios Negro e Iguaçu, aproximadamente entre o afluente Rio São João (atual divisa Mafra-Três Barras) e o afluente Rio Timbó (atual divisa Irineópolis-Porto União), entrecortadas por dezenas de afluentes menores, com as nascentes nos contrafortes da Serra Geral, da Serra do Espigão e da Serra da Taquara Verde, constituíram a última das fronteiras rasgadas no setor Setentrional da Região do Contestado, tendo permanecido praticamente desabitadas até o romper do Século XX. O território era dominado pelos ameaçadores botocudos, como os Xokleng, eles que, ao contrário dos índios Kaigang – que foram aldeados mais cedo – ofereciam resistência a qualquer tentativa de contato do elemento branco. Sem campos para a criação de gado bovino, principal atividade dos paranaenses no interior, naquela época, a única atração que a esquerda do Vale do Médio Iguaçu exercia eram os ervais, estes localizados no interior da floresta, habitat indígena. Ali, qualquer incursão era uma arriscada aventura.
As explorações ao Médio Vale do Iguaçu, associadas a posterior ocupação dos Campos de Guarapuava e dos Campos de Palmas, merecem especial registro, pois vieram a constituir uma das estruturas do desbravamento paranaense e catarinense, possibilitando a abertura de novos caminhos pelo Território Contestado, como a rota direta entre Palmas e União da Vitória, e outras circundantes à Região do Contestado, como a ligação entre Palmas e Campos Novos.
O ponto de partida para a fundação de um povoado, na margem esquerda do Rio Iguaçu, onde o Paraná criaria a Vila de Porto União da Vitória, data de 1842, quando um dos conquistadores dos Campos de Palmas, procurou e achou o vau neste ponto do rio. O passo viria a possibilitar maior facilidade para o transporte de sal e de gado entre Palmeira, nos Campos Gerais, e os Campos de Palmas. E entre o vau, que ficou conhecido como Porto da União, e a Vila de Palmas, foi aberta uma estrada em 1846, encurtando as distâncias.
A navegação a vapor, entre Porto Amazonas e Porto da União, trouxe considerável progresso, tanto para Porto União da Vitória como para Palmas. Entretanto, o roteiro da antiga estrada entre Palmas e União da Vitória, com 140 km, passando o Rio Jangada, representava dificuldades para o transporte. A solução encontrada pelo governo da Província do Paraná foi a abertura de uma nova estrada, que começou a ser construída em 1884. as obras prosseguiram até ser, finalmente, aberta em 1907, depois que nela se estabeleceu serviço regular de transporte de cargas e de passageiros por diligências.
2. 4 A contribuição indígena
Antes da vinda do “homem branco”, o Contestado, como espaço livre (mas não vazio), era habitado por dezenas de tribos indígenas, classificadas em variados troncos lingüísticos. Os silvícolas da tradição Guarani ocupavam as terras mais baixas dos vales dos rios Iguaçu, ao Norte e, Uruguai, ao Sul, enquanto que os índios do primitivo tronco Guainá ou Tapuia, do grupo Gê, distribuíam-se pelas terras mais altas do planalto. Assim, os campos e as florestas do Contestado eram de domínio dos Gê, índios que, conforme as derivações lingüísticas ou características culturais, a critério dos estudiosos eram chamados de Kaigang, Xokleng, Xócren, Patachô, Botocudo, Cren, Bugre, Bituruna, etc.
Indomaveis e nomades ao ultimo extremo, a isso levados pela continua guerra que lhes têm feito os brancos, habitam, estes selvagens, uma facha de sertão cercada por todos os lados de povos, villas e cidades, conservando, entretanto, no coração d’essas matas, quasi virgens, seus habitos primitivos (OURIQUE, 1887, p.24).
Durante todo o tempo da ocupação "branca" da Região do Contestado, de 1800 para cá, praticamente não se conheceu os Guarani ou grupos deste tronco, que foram vítimas das bandeiras paulistas escravagistas. A área, no decorrer do século XIX, era território sob domínio absoluto dos Kaigang e dos Xokleng que, genericamente, eram chamados pelos camponeses, sertanejos e fazendeiros de "bugres" ou de "botocudos". E só mais recentemente foi que se separaram os Kaigang (Coroados) dos Xokleng (Botocudos). A nação dominante na Região do Contestado, nos dois últimos séculos, era a Kaigang, da qual derivou o grupo Xokleng. Com dialeto pouco diferenciado dos Kaigang, o que prova sua filiação ao tronco Gê, os índios Xokleng eram grupos arredios de caçadores, coletores e pouco agricultores. Semi-nômades, dependiam quase que totalmente da caça e da coleta. Eram os típicos habitantes das matas, constituindo-se nos selvagens que mais resistiram às tentativas de aproximação com os grupos brancos.
Quando da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e da deflagração da Guerra do Contestado, havia vários tipos de “bugres” conhecidos na região: os Xokleng puros, ainda em estado selvagem, isolados em porções das matas fechadas da Floresta da Araucária; os Kaigang puros, já aldeados com alguns Guarani, estes também chamados de Coroado, nas regiões de campos e em fase de catequização; os cafusos, confinados no Toldo do Quati; e os mamelucos, em processo de aculturação e convivendo com os caboclos.
Os Xokleng do Contestado não queriam aproximação. Sentindo-se ameaçados, em bandos, atacavam fazendas e casas isoladas, para assaltar, matar e roubar utensílios e ferramentas. Eles eram muito atraídos pelos machados e facões trazidos pelos brancos. Foram rotulados de selvagens, destemidos, bárbaros, violentos, arredios e, comparados a bichos-do-mato, quando o “homem civilizado” aqui chegou e formou grupos de bugreiros para caçá-los, aprisioná-los e matá-los brutal e impiedosamente.
Durante a segunda metade do século XIX e nos primeiros anos do século XX, em Santa Catarina, ficaram famosos os grupos de “pedestres” e de “batedores-de-mato”, ou então, de "afugentadores de bugres", como também eram conhecidos, organizados para, num primeiro momento, contatar, aldear, pacificar e catequizar os índios. Entretanto, suas ações logo se caracterizavam como de "bugreiros" - a antítese de "bugres" - por afugentar, caçar, dispersar e matar os índios. A ordem final era: exterminar.
As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, com 8 a 15 homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sob o comando de um líder. A quase totalidade dos integrantes desses grupos eram ‘caboclos’, que tinham grande conhecimento sobre a vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos, de surpresa. Às vítimas poucas possibilidades havia de fuga (SANTOS, 1997, p. 27).
As frentes expansionistas paulistas e curitibanas que alcançaram o Contestado adentraram no espaço livre dos indígenas. No começo, os índios resistiram às penetrações brancas, mas não constituíram forte empecilho, apesar de seus constantes ataques às expedições exploratórias, aos tropeiros e às povoações. E aqueles que não se aldearam, simplesmente foram caçados e mortos.
Os Kaigang
A parte Setentrional e Ocidental do Território Contestado era, historicamente, ocupada pelos Kaigang, cujos domínios alcançavam também os Campos de Guarapuava e, ainda, as regiões Centro, Norte, Nordeste e Noroeste do Rio Grande do Sul.
A nação Kaigang - descendente dos Guaianá - que era respeitada pelas tribos dos Guarani desde os tempos do Descobrimento e, pelos bandeirantes paulistas escravagistas dos anos 1600, resistiu bravamente às investidas do homem "branco" até a virada do Século XVIII para o Século XIX, impedindo a ocupação e o povoamento do seu território pelos "civilizados", ao contrário do que ocorreu nos Tapes e nas Missões do Rio Grande do Sul, com a destruição das reduções jesuítas.
As frentes expansionistas paulista-curitibanas, após contatos iniciais com os Kaigang em Guarapuava, conseguiram domesticar alguns grupos, como os chefiados pelos caciques Viri e Condá, o primeiro, apaziguado em Guarapuava e, o segundo, que por volta de 1840 estava assentado nos Campos de Palmas-de-Baixo, mais precisamente na Campina do Irani, junto às cabeceiras do Rio Irani. Ambos foram importantes para a pacificação e o aldeamento dos silvícolas, principalmente Condá, que foi usado para o contato com seus irmãos do Rio Grande do Sul.
Os Xokleng
As terras mais altas, frias e úmidas do Contestado, na Serra Geral, incluindo a densa mata de araucárias da Serra do Espigão, constituiam parte do habitat dos Xokleng, como se nelas tivessem buscado refúgio para escapar dos também ferozes co-irmãos Kaigang, estes que preferiam viver nas áreas mais abertas dos campos. Mesmo pertencendo a um só tronco, o Macro Gê, as culturas dos dois grupos apresentavam sensíveis diferenças culturais. Assim, era no abrigo da escuridão dos pinhais, que os Xokleng construíam suas habitações. Conhecidos simplesmente por “bugres” ou apenas “botocudos”, estes nativos camuflavam-se na vegetação de tal sorte que era muito difícil percebê-los.
Os Xokleng viviam em grupos, separados uns dos outros, que volta e meia lutavam entre si, disputando espaço, sem contar que, permanentemente, lutavam contra os Kaigang, inclusive para roubar-lhes as mulheres, e atacavam impiedosamente os brancos das frentes pioneiras que avançavam sobre seus territórios. Suas armas de guerra e de caça eram: o arco, a flecha, a lança e a borduna. Viviam percorrendo as florestas em busca de alimentação, dividindo com os companheiros o que conseguiam caçar ou coletar, como raízes, frutos silvestres, pinhões, mel e larvas. Faziam uma bebida fermentada à base de mel, água e xaxim. O fogo era obtido pela fricção de pedras. Comiam carne assada na brasa e também preparavam o barreado. A base de alimentação entre março e junho era o pinhão, que retiravam das pinhas; também armazenavam as pinhas em cestos, que eram mergulhados das águas frias de córregos no interior da floresta, para alimentação nos meses seguintes.
Perambulando pelas matas, costumavam acampar ao relento, sob as copas das árvores. Algumas vezes, faziam pequenos ranchos de varas finas, com teto em forma de abóboda, coberto de folhas de coqueiros, palmeiras ou xaxins. Quando acampavam, construíam choças maiores, para uso coletivo. Obtinham vasilhames de troncos escavados em forma de cochos. Fabricavam cestos de vários tamanhos e para variados fins. Tornavam alguns balaios impermeáveis forrando-os com cera de abelha. Com técnica pouco refinada, faziam vasos de cerâmica e, as panelas, de barro e carvão amassados, que depois de moldadas e secas, eram queimadas para se obter consistência e durabilidade.
As tribos dos botocudos, também descendentes dos antigos Guaianá - entre elas se destacando os Xokleng, eram muito arredios, permaneceram internados nas matas, vivendo em estado pré-histórico até os primeiros anos do século XX. Dominando as partes altas das serras da Taquara Verde, Espigão e Geral, escaparam de todas as tentativas de pacificação, de catequese ou de aldeamento. Às vezes, atacavam os tropeiros ou casas isoladas, para matar os brancos; noutras, para roubar ferramentas, utensílios, facas e alimentos. Por serem vingativos ao extremo, até os Kaigang os respeitavam.
Descendência indígena
Ao longo dos caminhos abertos no Sul do Brasil, gradativamente, se foram instalando muitas famílias mamelucas, com os homens trabalhando, tanto nas tropas como nas fazendas, na condição de peões ou agregados. Sem fácil acesso a títulos de propriedade de terras, o caboclo logo passou a ocupar terras devolutas e inexploradas na condição de “posseiro” e, em poucos anos, dividiu o espaço com os “bugres” – os Kaigang e os Xokleng – ou os matando ou com eles realizando mútuo processo de aculturação. Esta geração cabocla aprendeu a conviver com a natureza proporcionada pela Floresta da Araucária e com os nativos, tanto nas partes de campos, como nas de matas fechadas. Não poucos indígenas sobreviventes do etnocídio promovido pelos bugreiros - que na sua maioria também eram caboclos - no Planalto Catarinense, vieram a mesclar-se com o “homem branco” na Região do Contestado. Pelo que conseguimos apurar em nossas pesquisas de campo, esta mistura étnica deu-se do caboclo homem com a mulher índia, fruto de estupros violentos e de relações por elas consentidas quando se sentindo vítimas de inferioridade.
Os novos mamelucos catarinenses, que denominamos de “geração do caboclo-pardo”, também herdaram traços dos Kaigang e dos Xokleng, tanto características físicas (pele de cor parda, poucos pelos, cabelos pretos, feição mongolóide primitiva e estatura mediana), como também antigas tradições, linguagem, hábitos, crenças, usos e costumes. De 1994 a 1997, pesquisamos as origens e as etnias de diversos grupos de estudantes, na faixa de 18 a 24 anos, escolhidos dentre os calouros nos cursos superiores mantidos pela Universidade do Contestado em Caçador e em Fraiburgo. Sem surpresa, num universo de 200 alunos pesquisados, encontramos 16, que nos declararam ter seus genitores - pais ou mães - ascendência do índio regional em nível de terceira ou quarta geração. Ora, ao mesmo tempo em que nenhum dos entrevistados assumia, antes da pesquisa, esta ascendência, o trabalho nos deu o índice de 12,5%, em pleno final do Século XX.
2. 5 A contribuição do negro
Desde quando da abertura dos caminhos dos tropeiros, da instalação das fazendas de criação e das primeiras explorações de ervais nativos, o negro participou da formação do homem do Contestado. Se considerarmos a presença, aqui, de pessoas desta raça, na forma pura, sua influência neste processo seria insignificante, pois poucos foram os africanos que se estabeleceram no Contestado. Entretanto, observamos que a maior parte dos caboclos da Região do Contestado, do tempo da Guerra do Contestado, era constituída por miscigenados de brancos com negros (mamelucos), tanto vindos de São Paulo nas entradas para ocupação das terras, na condição de escravos, como de trabalhadores livres oriundos de outras partes do país para a construção da ferrovia. Alguns dos principais líderes do movimento rebelde de 1913-1916, considerados “comandantes-de-briga”, eram negros, como Olegário Ramos, Joaquim Germano, Benevenuto Lima e Adeodato Manoel Ramos.
No Planalto Catarinense, o sistema escravocrata era um pouco diferente de outras partes do Brasil: havia muito mais liberdade, o tratamento era mais humano, os negros participavam dos trabalhos gerais das fazendas, a ponto de, antes da Lei Abolicionista de 1888, a maior parte dos escravos já ser livre por iniciativa dos próprios fazendeiros.
No início do Século XX, entre 1908 e 1910, houve uma rápida corrente imigratória de negros e mulatos para a Região do Contestado, que vieram da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, na condição de trabalhadores contratados para a abertura da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, no trecho de União da Vitória (PR) a Marcelino Ramos (RS). O contingente recrutado pela Brazil Railway Company para trabalhos braçais em nossa região chegou a cerca de oito mil pessoas, parte delas a seguir e até 1916 sendo aproveitada para a implantação dos trilhos no Ramal de São Francisco, trecho entre Mafra/Rio Negro e Porto União/União da Vitória, na direção do porto de São Francisco. Concluída a construção, já na segunda década do século XX uma parcela destes elementos não regressou à origem, optando por se estabelecer nas terras marginais da ferrovia e assim se inseriram na sociedade regional, trazendo suas tradições, usos e costumes.
Os historiadores de Santa Catarina são unânimes ao afirmarem que a participação do negro da formação da sociedade catarinense não foi significativa, devido ao pequeno número de africanos introduzidos.
Em Santa Catarina mesmo, o elemento africano nunca constituiu forte população; adensando-se mais no litoral, zona de lavouras, entretanto e em vista da colonização alemã e italiana, iniciada aí em 1828, conservou-se em baixa porcentagem. Em 1810, de uma população total de 31 mil habitantes havia apenas 7 mil escravos negros. Em 1872, a sua porcentagem era de 8,9%. Quando abolida a escravidão, em 1888, o número de escravos em Santa Catarina atingia apenas a 8 mil; nesta época a população total era de 200 mil habitantes. Um tão fraco contingente negro em Santa Catarina, especialmente no planalto, muito pouco influiu na gênese da sua população (LUZ, 1952, p. 41).
Também existe unanimidade entre os historiadores catarinenses e regionais do Contestado, nas afirmativas de que o negro pouco influenciou a formação da sociedade serrana catarinense, por seu pequeno número em relação à população, aqui reproduzindo os índices obtidos para essa então província. “É verdade que, das fundações do planalto, somente Lages teve pelourinho, cuja corrente de ferro entrou no inventário de Correia Pinto e ficou depois abandonada no sótão da casa de seu sucessor” (COSTA, Octacílio. Apud LEMOS, 1977, p. 67).
O negro entrou na formação da população serrana em uma escala muito pequena. Isto porque a pecuária, por longo tempo única ocupação do homem do Planalto, não necessitava muitos escravos. O negro só aparecia onde era exigido um serviço braçal penoso: na lavoura e na mineração. O pastoreio, de execução fácil e agradável, era de bom grado feito pelos “peões” mamelucos. Não tendo, portanto, havido nenhuma mineração. Nem lavoura intensiva no planalto, aí o negro escasseou (LUZ, 1952, p. 41).
Não há dados numéricos confiáveis nem registros específicos. Mesmo assim, é possível presumir-se que alguns negros tenham habitado pousos, currais ou invernadas na Serra Catarinense no tempo do auge da Estrada das Tropas Viamão-Sorocaba.
A Bandeira que acompanhou Correa Pinto na viagem de mudança para as “Lagens” – presume-se – era composta de umas oito ou nove famílias. A elas vieram juntar-se no primeiro lustro da fundação algumas outras, formando uma população inicial de mais de uma centena de habitantes. A estes deverão ser acrescentados os escravos de cada família. Quantos eram? Não há levantamento oficial, mas não será exagero dar para cada núcleo familiar a média de três escravos. E assim teriam vindo para Lages, de 1766 a 1770, uns cinqüenta escravos [...]. Em 1801, conforme estatística levantada pelo Padre Manoel Simões, vigário da Vila, vivam em Lages 78 escravos e 58 escravas [...]. Considerando sua extensão territorial, Lages não foi um município de grande população escrava. É explicável pelo fato de ser, naquela época, um centro de atividades quase exclusivamente pastoris e o negro não ter sido, nunca, um grande entusiasta das lides do campo. Era mais um homem para a lavoura e atividades correlatas, assim como a mulher se adaptava mais facilmente aos trabalhos caseiros. O que não quer dizer que com o correr do tempo um grande número deles não se afeiçoasse à via nas fazendas de gado, dando mesmo excelentes peões (COSTA, 1982, p. 178-182).
Quando da Revolução Farroupilha, conflito que se estendeu ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, no Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina, o escravo que servia ao exército revoltoso era considerado como liberto, igual ao exército Imperial, pois os livres não aceitavam combater ao lado de cativos. Durante o Brasil Colônia, os escravos serviam o Exército, mas seus senhores eram quem recebiam os soldos. Já na época do Império, os escravos que sentassem praça eram considerados libertos. Então, “os farroupilhas apenas imitaram ao Brasil, ao estenderem ao escravo-soldado os mesmos direitos que possuíam no exército Imperial”. (FLORES, 1980, p. 20).
Também por ocasião da Guerra do Paraguai, com a criação dos corpos de “Voluntários de Pátria” em 2 de outubro de 1867, o negro do Contestado teve um forte motivo para escapulir do regime da escravidão. O negro ganhava a liberdade definitiva quando se alistava ao Exército Brasileiro, garantindo-a mesmo que não passasse na inspeção de saúde e por isso fosse dispensado.
A Invernada de São João dos Pobres
Em meados da metade do Século XIX, o rico fazendeiro da família Carneiro, de nome Possidônio de Paula Carneiro, originário de Guarapuava, Estado do Paraná, numa iniciativa humanitária, resolveu doar a um grupo de escravos negros de quem era dono e que muito bem o serviam, enquanto lhes dava a liberdade, uma área de terras de campos, de “invernada”, localizada no Município de Porto União da Vitória, na região mais alta da “Serra do Espigão”, situada em direção Sul entre a “Serra de São Miguel” e os “Campos de São João de Cima”, tudo na época território administrado pelo Paraná. Deixando terras, prata, animais e escravos, ele faleceu na sua fazenda, em São João, a 28 de dezembro de 1878 e, conforme seu testamento, em inventário realizado em Palmas a 13 de outubro do ano seguinte, os escravos obtiveram a liberdade e parte das terras da fazenda.
Diversos grupos familiares de ex-escravos, agora libertos, fixaram-se na área que receberam em doação – uma “invernada” – formando um ajuntamento de casebres, que logo ficou conhecido como “Povoado de São João dos Pobres”, projetando-se também porque nas proximidades, passava a “Estrada Estratégica”, construída em 1885 pelo Império, para ligar o Porto União da Vitória com Palmas, daí demandando à fronteira com a Argentina.
Em 1906, quando os agrimensores da Companhia Estrada de ferro São Paulo Rio-Grande, depois de mudar o projetado traçado original da linha permanente, que atravessaria o Território Contestado (antes prevista para se estender pelos Campos de Palmas-de-Baixo, Campos de São João do Irani e Estreitinho do Rio Uruguai), ao locar o sub-trecho na área de transposição da Serra do Espigão, em direção Sul às nascentes do Rio do Peixe, localizadas próximas aos Campos de São Roque (hoje cidade de Calmon), contataram esta comunidade no topo da serra, bem onde planejaram construir uma parada-de-trem, ou seja, uma estação ferroviária, esta que, inaugurada em 1909, foi denominada de “Estação São João” (berço do centro da hoje cidade de Matos Costa). Este “ajuntamento”, então tido como de pobres, negros, ex-escravos, já estava bastante diluído, em função da miscigenação de seus membros com uma comunidade indígena vizinha, situada nas margens do Rio do Pardos, distante poucos quilômetros. Parte dos índios botocudos, do grupo Xokleng, conhecidos por “bugres”, aldeados no “Toldo do Quati”, misturaram-se com os negros e vieram a ser o primeiro grupo identificado de cafuzos formado em Santa Catarina.
Desta forma, quando da inauguração da Estrada de Ferro, no final do ano de 1910, em São João dos Pobres e no Toldo do Quati residiam negros, índios e cafuzos, em perfeita convivência entre si e, inclusive com famílias caboclas (estas descendentes de mamelucos), que já se espalhavam pelo Contestado. Neste tempo, a região também recebeu outros novos moradores – inclusive negros e mestiços – contingentes de ex-trabalhadores da construção da ferrovia, que, vindo de longe, naquele tempo internaram-se pelo sertão, optando por não regressar a seus lugares de origem, a maioria do Sudeste do país.
A maioria dos negros, originários das alforrias do fazendeiro Carneiro, já não existia mais, quando seus descendentes – os cafuzos – acompanhando os nativos Xokleng, foram levados para mais ao Leste do Estado, descendo a Serra Geral, onde passaram a compor os agrupamentos indígenas do aldeamento reserva indígena do Plate e Alto Vale do Itajaí do Norte, em Ibirama, onde o SPI estabeleceu o Posto Indígena Duque de Caxias (depois Posto Indígena Ibirama), para aldear os Xokleng da Serra Geral e da Serra do Mar. Esta, a verdadeira origem dos conhecidos “cafuzos de Ibirama”. Quando da deflagração da Guerra do Contestado, o povoado de São João dos Pobres foi atacado por um piquete de caboclos (a 6 de setembro de 1914), incendiando-se todas as casas do lugar, com o que os sobreviventes da antiga população, temerosos, bateram em retirada.
A Invernada dos Negros em Campos Novos
Com a abertura das veredas das Missões, o tráfego vertical dos tropeiros de muares e bovinos deslocou-se do eixo da Estrada Real, num primeiro momento para o eixo Cruz Alta-Passo Fundo-Campos Novos-Curitibanos-Rio Negro-Lapa e, depois, para o traçado Passo Fundo-Clevelândia-Guarapuava-Palmeira ou Passo Fundo-Palmas-União da Vitória-Palmeira. No setor Meridional da Região do Contestado, se Curitibanos foi um dos pioneiros pousos de tropeiros na Estrada da Mata, Campos Novos foi um dos primeiros na Vereda das Missões, como está registrado:
Filho de família de fazendeiros em Lages, descendentes de tropeiros que se estabeleceram no Planalto Catarinense no Século XVIII, o cidadão Major Matheus José de Souza e Oliveira veio a se fixar nos Campos Novos como fazendeiro, ali recebendo em sesmaria a propriedade da Fazenda São João ainda antes da vigência da Lei das Terras, imóvel que foi significativamente ampliado em 1875 por compra de área adjacente. Adoentado, em 1877 este fazendeiro lavrou testamento, doando uma parte das suas terras – uma invernada – a escravos e ex-escravos das suas relações.
No final de 1877, em seguida ao falecimento de Matheus José de Souza e Oliveira, foi aberto o testamento e procedeu-se o inventário, concluído por sentença judicial a 18 de dezembro do mesmo ano, resultando na partilha da antiga “Fazenda São João” entre a viúva, como meeira e cessionária do seu sogro, Joaquim Antunes de Oliveira, e os 11 negros ex-escravos. O próprio fazendeiro, neste documento público, afirmava estar doando uma área de campos e matos (uma “invernada”) a escravos aos quais já havia dado alforria, e mais, a outros negros, ainda escravos, que serviam a ele e à sua esposa, estes que vieram a obter a liberdade logo após seu falecimento e, assim, também obtiveram direito à mesma doação.
Ainda na primeira década do Século XX, foi proposta uma ação judicial de divisão da Fazenda São João, para dela ser destacada a área correspondente à “Invernada”. Um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, de 15 de setembro de 1911, confirmou em parte a sentença proferida por acórdão anterior, estabelecendo uma linha reta como divisa da referida fazenda e as terras legadas aos ex-escravos para separá-las. Já em 1928, os herdeiros dos escravos decidiram realizar partilha do imóvel. Em 1939, realizada a divisão judicial, configurou-se o imóvel não mais como condomínio de herdeiros. A propriedade foi constituída em 33 quinhões, sendo um correspondente à metade da área, que ficou para o advogado em pagamento de honorários, e o restante veio a constituir 32 quinhões, estes titulados separadamente para os grupos familiares de descendentes e sucessores dos quatro ex-escravos. A seguir, a maior parte das glebas for vendida para imigrantes, seguindo os planos de colonização da época.
2. 6 Caboclo-pardo, o homem do Contestado
Por ocasião da Guerra do Contestado, estimamos que 90% da população desta região era formada por caboclos natos e acaboclados e, que a metade desta percentagem devia-se a um tipo especial de caboclo. Este sub-tipo, ou “tipo especial”, que encontramos espalhado pela região ainda no final do Século XX, entre os sobreviventes da Guerra do Contestado e remanescentes dos primeiros povoadores e, agora, com numerosa descendência, apesar da cor da pele igual e, mesmo com traços e complexos culturais idênticos a de todos os outros caboclos regionais, revelou-nos possuir uma condição social inferior e de ter elementos culturais que os outros caboclos não tinham. Uma originalidade, então, ficou evidente e não tivemos dúvidas: estávamos diante do “homem do Contestado”.
Surgiu aos nossos olhos, assim, o “caboclo pardo”, como a mais original de todas as designações para os “homens do Contestado”. Ele reúne todas as características étnico-raciais do “caboclo” nacional e regional, mas vai além por revelar ser possuidor de um bom número de traços e complexos culturais típicos, encontrados no Planalto Catarinense, muitos deles não existentes fora daqui. Escolhemos a expressão “pardo”, pois esta era (e ainda é) a cor da pele do “nosso” caboclo.
No Brasil, não podemos esquecer a presença do negro no processo de mestiçagem, logo após a introdução de escravos africanos. Não só ele, mas variados grupos étnicos se ajustaram, adaptando-se uns aos outros, em todo o território. Os angolas ou congos eram os negros oriundos da África; “crioulos” e “moleques”, por terem nascido no Brasil. Para eles, os brancos nascidos na Metrópole eram chamados “reinóis”; os que nasciam no Brasil eram conhecidos por “mazombos”.
Aos tipos resultantes dos cruzamentos em que entrou o sangue africano, denominaram-se, seqüencialmente: “mulato” (branco e negro), “caboré” (índio e negro), “xibáro” (caboré e negro) e “curibóca” (índio e caboré). “Do ponto de vista intelectual e social, porém, o mais notável tipo mestiço do Negro é o Mulato, como fora o Mameluco entre os mestiços de índio” (MARTINS, [s.d.], p. 130).
Além do branco, do índio e do negro, foi no Século XIX que despontaram no Paraná e nesta parte, hoje catarinense, do Território do Contestado, também os tipos humanos advindos do mulato, do cafuzo e do mameluco, e também do xibaro e do curiboca, genericamente denominados na Antropologia de “caboclo”, que nós classificamos como entre os formadores do “homem do Contestado primitivo”, para diferenciá-lo do “homem do Contestado contemporâneo”, este último surgido após o processo de colonização de terras devolutas por imigrantes egressos de outras colônias sulinas.
Assim, portugueses, luso-brasileiros, castelhanos, negros, índios, mamelucos, mulatos e cafuzos, ao longo do Século XIX, formaram o nosso “homem do Contestado primitivo”. Vermelhos nativos da terra, negros trazidos da África, brancos oriundos de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul, mestiços com a pele cor-de-cuia ou cor-de-pinhão e imigrantes da Europa, constituíam os biotipos no Território do Contestado. É a este “tipo humano” que atribuímos a denominação de “caboclo”, sem nenhuma sombra de dúvida, também com sangue indígena nas veias, seja puro, seja mestiço.
O tipo humano mais original da Região do Contestado é o caboclo surgido como segunda ou terceira geração da miscigenação racial branco-vermelha: filho do curiboca com o mameluco, herdeiro da cultura dos descobridores e da cultura autóctone. Além de preservar traços da cultura indígena, o nosso caboclo pardo mais primitivo era marcado pelos traços das tradições de origem ibérica, do tradicionalismo dos bandeirantes paulistas, do conservadorismo dos curitibanos e do comportamento dos gaúchos dos pampas, com o adicional de ser um especialista em vida selvagem.
3 O complexo cultural do homem do Contestado
No alvorecer do Século XX, a Região do Contestado já estava semi-ocupada. Havia uma população conhecida, esparsamente distribuída entre pequenos quadros urbanos e extensas áreas rurais, nas vilas de Lages, Campos Novos, Curitibanos, Rio Negro, Porto União da Vitória, Palmas e Clevelândia, nos pequenos povoados de Canoinhas e Vila Nova do Timbó, nas grandes fazendas de criação de gado, nos ervais e em núcleos coloniais de imigrantes, todos estes vivendo em sesmarias legalizadas, posses legitimadas e lotes demarcados.
Entretanto, a par dos “residentes”, havia ainda muitas outras pessoas que sequer apareciam nos registros oficiais e, por isso, não contavam para os censos demográficos e nem nas listas eleitorais. Estes, na maioria, eram ex-tropeiros, ex-peões, ex-agregados, ex-escravos negros, ex-colonos que, misturados aos índios e a elementos desconhecidos, fossem simples aventureiros, exploradores, refugiados de guerras ou foragidos da justiça, haviam adentrado pelo interior a fundo. Era aquela gente simples que habitava os campos e as matas, pelos outros tidos como “terras incultas e selvagens”, “sertões desconhecidos” ou “campos inexplorados”, que, pensava-se estarem desertos, mas que nem tanto estavam.
Todo este conjunto humano constituiu o “homem do Contestado primitivo”, ou seja, a população nativa e imigrante, autóctone e alienígena, que abriu os primeiros caminhos e por eles tropeou, nos antigos pousos instalou as fazendas pioneiras e construiu as primeiras casas urbanas, que assistiu a abertura das primeiras estradas carroçáveis, que sentiu a força do capital internacional, sem entender o que era imperialismo ou capitalismo, quando da chegada da estrada de ferro, da instalação das serrarias da Lumber Company, que ergueu engenhos e moinhos coloniais, que se posicionou (ou não) pró Santa Catarina ou pró Paraná na questão de limites, e que se envolveu - direta ou indiretamente - na Guerra do Contestado.
3. 1 O Caboclo pardo do Contestado antigo
Temos clara a distinção de dois sub-tipos de “caboclo”, como habitantes do Território Contestado, geograficamente dividido pelas serras do Espigão e da Taquara Verde. O primeiro, mais antigo, localizado no Centro e na parte Meridional da Região do Contestado, é o caboclo-camponês, criador e lavrador, praticamente igual a qualquer outro caboclo mais conhecido. O outro é o caboclo-sertanejo, mateiro e meio-colono, localizado no Planalto da Bacia do Iguaçu, na parte Setentrional da Região do Contestado; é de formação mais recente e um pouco diferente do anterior, pois teve menor incorporação da corrente migratória sulino-gaúcha e, já em meados do século passado recebeu mais uma influência, que o primeiro não teve, a do imigrante europeu instalado no Sul do Paraná, nos vales dos rios Negro e Iguaçu, em seguida a 1830.
O antigo “agregado” das grandes propriedades, elemento que forma um dos nossos caboclos pardos, tinha uma característica: ele era o que consideramos o “pobre” economicamente. Seus parcos bens resumiam-se àqueles que ele precisava para sobreviver - quando tinha - e sustentar sua família - quando podia - sem nenhum adicional de conforto. Mesmo sendo ocupante efetivo deste chão dezenas de anos antes da chegada das levas de imigrantes do Século XX, curiosa e inexplicavelmente, pelas suas condições sócio-econômicas, o caboclo-pobre foi marginalizado pelo caboclo-rico e considerado como “intruso” em Santa Catarina pelo próprio Governo Catarinense. Enfatizamos o tipo de caboclo – pardo e pobre – o mais original de todos, pois sabemos que, independentemente da conformação racial, ficou conhecido como sendo o “excluído”, ele que sempre foi considerado como membro de uma camada intermediária na estratificação social dos primórdios da nossa História. Este caboclo, apesar de independente, livre de amarras, era um homem marginalizado.
Vivendo em liberdade no isolado sertão de pinhais , o caboclo pardo aqui encontrou seu habitat, vindo a tirar da mata as oportunidades de subsistência, desde a madeira para suas construções, os animais selvagens para a alimentação, as frutas e mel nativo, o pinhão e a erva-mate, servindo-se dos rios para a pesca e, nas clareiras plantou suas roças, enquanto que, na imensidão dos campos, encontrou a natureza aberta para praticar o pastoreio.
Ao longo do Caminho do Sul e nas veredas das Missões, gradativamente foram se instalando muitas famílias mamelucas, com os homens trabalhando tanto nas tropas como nas fazendas, na condição de peões ou agregados. Sem fácil acesso a títulos de propriedade de terras, logo passaram a ocupar terras devolutas e inexploradas na condição de “posseiros” e, em poucos anos, dividindo o espaço com os “bugres” e com aqueles imigrantes saídos dos seus núcleos coloniais, e com eles realizando mútuo processo de aculturação, esta geração cabocla aprendeu a conviver com a natureza proporcionada pela região.
Como derrubador de lenha para vender ou de madeira para alguma serraria, já o caboclo despende um grande esforço físico: embrenha-se no mato, de machado às costas, com um saco em que leva o alimento e os apetrechos de sua cozinha rudimentar, com mais alguns companheiros e ahi fica os dias necessários até completar a tarefa. Constróe com uns páus e um pouco de palha um efemero rancho para dormir as noites (LUZ, 1952, p. 50).
Quando se aproximavam, eram camaradas, conforme a denominação que se dava ao seu trabalho. Posteiros, residiam nas terras das grandes fazendas, nos pontos mais distantes das sedes, como vigilantes em longínquas invernadas. Eram feitores, capatazes, capangas, compadres, assim formando uma rudimentar clientela dos fazendeiros-ricos. Com suas famílias, moravam em toscos ranchos de madeira com chão de terra batida, espalhados pelos campos; criavam porcos e galinhas, plantavam feijão, milho, abóbora, mandioca, amendoim, batata e alguns legumes. Mantinham relações de compadresco com seus patrões ou arrendadores, considerando-se seus compadres e, seus filhos como afilhados, quando isso lhes era conveniente.
Se considerarmos a grande extensão das terras nos primórdios tempos, e mesmo na fase inicial dos anos 1900, revelando a necessidade de trabalho para mantê-las, pode-se deduzir o quanto era numeroso o grupo de agregados espalhados pela região. Adentraram o sertão e, pensando valer-se do antigo sistema de “posses”, enraizavam-se em terras distantes dos núcleos da civilização. Não mais considerados como empregados, dependentes diretos de seus senhores, tinham a sua mão-de-obra valorizada e promovida. Muitos deles sonharam e tentaram - sem êxito - deixar de ser simples moradores de vida emprestada.
Sem mais compromissos, a não ser com o sustento familiar, nas matas, estes caboclos pardos dedicaram-se a explorar os ervais e a criar porcos selvagens, que só eles sabiam domesticar. Adquirindo algumas mulas, também viraram tropeiros e, quando não, repetiam as cenas do tempo da escravidão e carregavam seus fardos nas costas. Isolados e desprotegidos, desconfiavam de tudo e de todos. Escondiam suas filhas dos estranhos, mas não lhes negavam hospitalidade.
Nosso caboclo, antes um agregado e, depois, um desgarrado, tinha em si um pouco-de-cada-coisa: conhecia os labores do tropeirismo, as manhas da peonada, o artesanato rural, as técnicas da lida com o gado, os meios de sobrevivência na selva. Não era preguiçoso, como muitos teimam em creditar-lhe: trabalhava muito nas fainas diárias, do cantar-do-galo ao por-do-sol e, assim, pouco se divertia.
Gostava de música, mas não dançava além do vanerão ou do chote. Enaltecia tradições dos antepassados, mantinha usos e costumes dos pioneiros. Curvava a cabeça em sinal de respeito aos padres, quando estes o visitavam, ouvia a palavra de Deus pela Bíblia, mas em casa guardava a imagem do seu santo-protetor, São João Maria, sem esquecer suas profecias de um futuro inquieto.
Era um homem ativo: caçador, pescador, lenhador, lavrador, serrador, ervateiro. Seu mundo era a família e seu universo era a terra. Não se desapegava dos modismos dialetais, nem de certos hábitos arraigados, como o cigarro de palha, o trago de cachaça, o largo uso de apelidos, a faca sempre na cintura, o facão fácil à mão e a arma carregada. Homem cheio de orgulho, bom de prosa, simultaneamente capaz de grande amizades e de ódios mortais. Gostava de exibir-se, de mostrar valentia e até de contar mentiras de façanhas que talvez nunca saíram da sua imaginação. Era respeitoso e valente, não fugia de brigas e tirava a limpo qualquer desaforo recebido.
Ao lado do tropeiro, do peão, do colono e do ervateiro, este homem, outrora serviçal deles, não raras vezes fugitivo da polícia ou da justiça, acusado ou condenado por qualquer crime, este tipo era o mais genuíno caboclo pardo. Ele, que um dia, pensou ser possível se livrar das garras dos donos-da-terra, dos chefetes-de-aldeias, dos fazendeiros arrogantes ou dos coronéis-da-roça, que sonhou em obter uma sesmaria, conseguir uma posse ou garantir um pedaço de chão para viver, e ficou só no sonho.
Entre eles vinham despejados de posses anteriores, onde já entrara o elemento desbravador por excelência: uma simples picada, um precário caminho para acomodação de colonos estrangeiros, ou mesmo uma estrada; outros tangidos pela pobreza, outros ainda condenados pela justiça civil e militar, criminosos e desertores, afora os perseguidos políticos dos régulos de aldeia, que não eram poucos. De núcleos assim constituídos, perdidos no ermo, na confusão dos esquisitos, havia de irromper, em pandilhas ferozes, o bandido, o jagunço, o fanático (SOUZA, 1987, p. 138).
Quase que de repente, no alvorecer do Século XX, à mercê da “nova civilização”, o caboclo pardo viu-se diante dos enormes carroções-polacos e de um dragão de ferro, que vieram para substituir suas mulas. Os engenhos deixaram de comprar a erva-mate que tão bem cancheara. Foi impedido de catar pinhão e de plantar milho para engordar seus porcos. Confundiam-no com o bugre da mata. Pouca gente queria o seu charque, preterido às carnes defumadas e depois à carne dos frigoríficos. Não era proprietário de coisa alguma além de si mesmo, nem semesmeiro, nem posseiro, nem assentado. Passou a ser vítima de posseiros e grileiros de terras. Perdeu sua morada para os trustes. E quando tentou reagir, a seu modo, todos aqueles que não queriam saber dele, não hesitaram em alardear: bandido! bandoleiro! fanático! jagunço!
Na população do Centro-Oeste Catarinense, hoje encontramos o seu folclore, que revela o saber tradicional do Homem do Contestado Primitivo no final do Século XIX e no início do Século XX, envolvendo um conjunto de tradições orais da cultura imaterial (mitos, lendas, contos, fábulas, causos, trovas e cantos) e uma cultura popular de ordem material (utensílios, habitação, indumentária, instrumentos, remédios e culinária), bem como nos apresenta os antigos hábitos, costumes, linguajares, superstições, crenças e crendices.
Na área cultural situada no planalto serrano catarinense, na ecologia da mata de pinheiros, onde o homem, o cavalo e o boi, numa associação-tipo, identificam a área cultural gaúcha, as diferenciações transferem à observação preparada um painel regional peculiar à área fisiográfica: ali a habitação, os quefazeres do pastoreio, os hábitos, os costumes, a cozinha, as lendas, os casos, as orações, as devoções, as benzeduras, as adivinhações, o cancioneiro, as danças, as trovas, as estórias, o vocabulário, tudo e todos os ingredientes componentes do viver regional e percebidos quotidianamente, seja no lar, no trabalho ou no lazer, valem-se das invenções, problemas e soluções inerentes (SOARES, 1979, p. 11).
Os elementos folclóricos do homem do Contestado coincidem com os usos e costumes de outras populações brasileiras, o que revela a parte da cultura “adquirida” da nossa gente. Interessante é que alguns “folkways” ou “mores” de caboclos de outras regiões não se reproduziram no Contestado, talvez porque aqui faltou algum ingrediente que possibilitasse a manutenção de determinadas tradições. Em contra-partida, aqui se desenvolveram alguns usos e costumes e novos padrões culturais .
No folclore regional do Contestado (hoje) encontramos, com raízes mais profundas, a influência indígena (Guarani e Gê), as tradições de origem ibérica (lusas e espanholas), os traços comportamentais dos caipiras paulistas, dos paranaenses dos Campos Gerais e dos gaúchos rio-grandenses e a cultura advinda da Europa Central com os imigrantes pioneiros germânicos e eslavos. Aqui, limitados pelo espaço, apresentamos apenas alguns aspectos tradicionais da nossa primeira gente, na tentativa de visualizar, ao menos genericamente, como viviam os primeiros habitantes da Região do Contestado antes da Guerra do Contestado e da colonização
3. 2 A Educação Escolar no Contestado antigo
Na sua evolução, ainda antes de ser Província, Santa Catarina não passou por nenhum processo diferente daqueles vividos pelas então outras capitanias, ouvidorias, comarcas e províncias brasileiras do tempo antigo. Por esta razão, a par de outros fenômenos, a “educação escolar”, em Santa Catarina, esteve enquadrada nos padrões igualitários estabelecidos para todo o Brasil Colonial. O estudo sobre os primórdios da educação escolar brasileira, estereotipada em terras catarinenses até o final do Século XIX, mesmo enquanto ainda referenciadas como pertencentes à Província, revela-nos o sistema gerenciador da “instrução” como de fundamental importância para a manutenção de uma aristrocracia no poder político.
Como as bases políticas catarinenses distribuíam-se praticamente em duas áreas geográficas distintas – Litoral e Planalto – e ambas revelavam a estratificação social marcada pela dominação política por uma minoria, detentora do poder, assim com total poder também sobre a educação, atrelando-a aos seus interesses políticos, em Santa Catarina, o processo histórico não pode ser observado diferentemente do restante do país, onde, nas demais províncias, esta situação de dependência era idêntica, assentando-se mais no poder real dos donos da terra, nos interesses do latifúndio e numa minoria aristocrática agrária, para cujos interesses seria a organização do ensino. As gerações seguintes às primeiras aristocracias, que gradativamente foram trocando o campo pela cidade, conseqüentemente iniciaram o processo de transplante da sede do poder político para as aglomerações urbanas.
Nos anos seguintes à Independência, verificou-se a diversificação da demanda escolar, facilitada pela “provincialização” da educação. Já não era mais somente a classe oligárquico-rural que procurava a escola, mas também a nova e ainda pequena camada intermediária que havia percebido a escola como caminho para a ascensão social. Desprovida de terras, um dos principais símbolos do poder, esta camada buscava na escola a educação necessária para firmar-se como classe e assegurar o status que aspirava.
Adotado também aqui o uso do ensino para fins políticos, verificamos que os acontecimentos em nossa Província continuavam não diferindo da realidade brasileira daquela época, onde a forma como se organizava o poder político também se relacionava diretamente com a organização do ensino, em princípio porque o legislador “[...] é sempre o representante dos interesses políticos da camada ou facção responsável por sua eleição ou nomeação e atua, naquela organização, segundo interesses ou segundo valores da camada que ele representa” (ROMANELLI, 1989, p. 14). Em Santa Catarina, a força do coronelismo expressava-se através da Inspeção Escolar, uma instituição que “surgiu como uma ação de controle da eficácia das atividades docentes. Era de certa forma, um mecanismo de controle do governo sobre as ações pedagógicas e do próprio professor” (LUCIANO, 2001, p. 156). A Inspeção Escolar surgiu em 1836, inicialmente como competência das Câmaras Municipais e, depois de 1854, do Estado, para ser exercida por pessoas “de confiança” dos governantes (indicados pelos “coronéis”), para fiscalizar e controlar as escolas, os professores e as atividades pedagógicas.
O Contestado, tal como se apresenta geograficamente hoje, só passou a dispor de informações para a composição de uma História da Educação Regional, em 1917, após a criação dos municípios de Mafra, Porto União e Cruzeiro. Para o período antecedente a este ano, dispomos de registros catarinenses apenas para os municípios de Lages, Curitibanos, Campos Novos e, mais recentemente, Canoinhas. São paranaenses, pois, os registros das atividades educacionais no Século XIX, em Rio Negro (que alcançava Mafra e Itaiópolis), em Porto União da Vitória (abrangendo Porto União) e em Palmas (compreendendo todos os municípios do setor Ocidental do Contestado, inclusive Cruzeiro).
Em Lages, existiam duas categorias, que acomodavam a população: as classes subalternas subjugadas ou classes populares produzidas passivas e submissas, que se contrapunham com o autoritarismo do Estado na esfera local, ou o exercício autoritário e discriminatório do poder público municipal pelas elites dominantes da sociedade (MUNARIM, 2000, p. 95). A falta de educação escolar para a grande maioria dos subalternos é refletida ainda hoje no índice de analfabetismo na região, que é um dos mais elevados em Santa Catarina. À exceção de momentos e locais institucionais específicos, registra-se uma grande ausência da escola pública ao longo da história e em outros, uma educação dualista. Já para os filhos das elites dominantes, o que quer dizer filhos de fazendeiros, havia escola especial, particular, desde meados do século anterior. Primeiro, o “professor de fazenda, que nela ficava por alguns meses [...] e vivia mudando-se de uma para outra, onde houvesse filho de fazendeiro para ensinar a ler e a fazer as quatro operações” (COSTA, 1982, p. 999). Depois, [...] do final do século passado até início deste, os fazendeiros mais abastados enviavam seus filhos a São Leopoldo (RS), onde recebiam educação no Colégio Jesuíta Nossa Senhora da Conceição (homens) e no Colégio Franciscano São José (as mulheres, em menor número) (MUNARIM, 2000, p. 102).
Do Paraná para a História do Contestado referenciada no Século XIX, precisamos atribuir integralmente todos os acontecimentos educacionais dos municípios de Itaiópolis, Três Barras e Timbó. De Rio Negro e União da Vitória, a captura de fatos históricos volta-se às sedes municipais, que foram cortadas ao meio pelos novos limites interestaduais e, principalmente, pertencem-nos os fatos havidos na parte Sul do território de Palmas (cuja sede ficou acima da linha de divisa). De modo geral, a educação era tratada de forma idêntica no Paraná e em Santa Catarina. Até o final do Século XIX, os Estados “empurravam” as obrigações educacionais para os respectivos municípios e “apoiavam” as iniciativas particulares, subvencionando as escolas do tipo “comunitárias”, principalmente nos núcleos coloniais. A inspeção escolar, através dos inspetores comissionados, distritais e locais, era utilizada como instrumento político-eleitoreiro. As reformas do ensino não se apoiavam em experiências anteriores.
3. 3 A Habitação no Contestado antigo
Contrastando com as propriedades dos fazendeiros, nos interiores da Região do Contestado ainda agora existem às centenas casas típicas caboclas, construídas e habitadas da mesma forma como há dezenas de anos atrás. As edificações da propriedade cabocla posicionam-se em terrenos altos e descampados, longe de árvores, principalmente de pinheiros e próximas a olhos d’água ou riachos. As dos pobres são constituídas por uma pequena casa de moradia, um galpão, um chiqueiro, um cercado para a horta (este, nem sempre), o forno de pão, o cocho e uma mangueira e uma estrebaria, quando cria gado. As instalações sanitárias, quando existem, são fora da casa: é a casinha da “patente”. Algumas árvores frutíferas exóticas (maçã, pêra, laranja, limão, ameixa) destoam do ambiente.
As habitações são pequenas casas de madeira de pinheiro, ao natural (sem pintura), sem mata-juntas, o que permite a existência de frestas entre uma tábua e outra, cobertas por tabuinhas também de pinho. Na cobertura, não tem forro e no piso não têm assoalho: o piso é de terra batida. As portas têm trancas ou taramelas (“tramelas”, diz o caboclo) e suas dobradiças são de couro pregado. As janelas são fechadas com tampas soltas de madeira. A cozinha é formada por uma mesa, bancos e algumas prateleiras; o fogão, de pedra, com uma chapa de ferro em cima do braseiro, fica a um canto.
Entre aqueles caboclos que se mesclaram com os imigrantes, ou mesmo, entre os imigrantes que se acaboclaram, encontramos propriedades melhor estruturadas e bem construídas. Ao que já citamos como componentes dos caboclos-pobres, adicione-se a casinha com o tanque-de-lavar roupa e o chuveiro, o galinheiro, o pequeno açude, talvez um parreiral. O cercado da horta existe com certeza e com variedade de hortaliças. Nas casas maiores e pintadas (algumas delas), as telhas são de barro, há forro e assoalho de madeira. Na parte da frente existe a “área” (varanda), na qual está a gamela, a tijela e o jarro para a lavação dos pés e das mãos. As janelas têm vidros e cortinas. Dependendo do desnível do terreno, tem porão, aberto ou fechado. As instalações sanitárias mantêm-se fora da casa e só em poucas as vemos dentro. Aí então completadas com a banheira para o banho em imersão. Nas cozinhas, encontramos o fogão-de-lenha, mesa e cadeiras, o caixão-de-lenha, a cristaleira, o paneleiro de tripé. Em cada quarto, há a cômoda, o guarda-roupa, a cama de madeira com estrado, colchão de crina vegetal ou palha de milho e travesseiro com penas de aves.
3. 4 A Culinária no Contestado antigo
Entre os pratos da cozinha antiga, na maioria mantidos até hoje, destacamos: quibebe de abóbora, combuquira, pamonha, tapioca, angú de fubá, arroz carreteiro e tropeiro, arroz de forno e puro cozido n’água, canja de galinha, sopa de osso-de-boi, cará frito, charque, guisado de charque, cuscus, farofa, feijão de tropeiro (não o preto, mas sim o pardinho), fritada de ovo, galinha ao molho, assada inteira à caipira ou à passarinho, farofa de tutano frito com farinha de mandioca e açúcar, geléia de tutano, mocotó, pamonha de milho verde, toucinho frito na banha, passoca de carne seca, rabada, pirão de mandioca, carnes de gado, porco e ovelha assadas, cozidas, ensopadas ou fritas, torresmo, língua-de-boi, barreado, pinhão na chapa, cozido em panela ou sapecado nas grimpas, entre muitos outros. “Há ainda alimentos antigos, já em desuso, como origones, queijo de origone, bolinho de coalhada, etc.” (LAYTANO, 1952, p. 48). Decididamente, o peixe não era prato predileto na cozinha dos caboclos da Região do Contestado; quando à mesa, o preferido era o cascudo.
O conhecido “arroz de carreteiro”, prato feito de guisado de charque com arroz, adicionado por alguns temperos, por demais badalado entre os carreteiros do Rio Grande do Sul, é o mesmo “arroz de tropeiro”, que ficou conhecido no tropeirismo. Ele lembra a alimentação básica nas tropas: “Para maior facilidade e economia de tempo, geralmente o tropeiro já levava o lanche de viagem pronto - a passoca - charque cozido e depois socado no pilão, ainda quente, ao que se misturava farinha de mandioca, formando uma substancial farofa, comida como mistura ao café. Os patrões às vezes preferiam a sua ‘passoca’ de galinha com farofa”, anotando no final: “O lanche do tropeiro, a passoca, é também conhecido como ‘revirado” (MATOS, 1979, p. 26-27).
A farinha de trigo é usada há longa data e, mais recentemente, a de centeio. A farinha de milho substitui, na maioria das vezes, a farinha de mandioca. Ambas são usadas nos virados e nos tutus e pirões de feijão, sempre acompanhados de couve refogadinha, torresmos e fritadas de ovos. [...] Os imigrantes italianos divulgaram o macarrão, a polenta, o risoto e as massas em geral, e os alemães, as salsichas, os salemes, os frios, as saladas, as conservas e a broa escura de centeio (RODERJAN, 1981, p. 54).
Apesar de se constituir, ao lado do milho, no alicerce alimentar indígena, a mandioca não era uma planta cultivada extensivamente na região. Havia a mandioca-braba e a mandioca-boa, esta última saboreada depois de cozida na água e frita na gordura. A farinha seca, branca ou torrada, aqui muito usada para o virado-de-feijão, bem como sua goma (polvilho), era geralmente trazida dos engenhos do Litoral. Do milho em abundância, fazia-se a farinha-de-milho, ou fubá, com o primitivo pilão indígena, este depois substituído pelo monjolo e, mais tarde, pelo moinho-de-pedra; também do milho e da mandioca, nos fornos, produzia-se o beiju, ou bijú.
A feijoada (iniciada no Brasil no tempo da escravidão negra), com o feijão em caldo grosso, não prescindia do pé-de-porco, da cabeça-de-porco, tiras de carne de segunda, cortes de lingüiças, tripas frescas e pedaços de costela salgada. O churrasco de gado bovino era a comida preferida dos peões, mas se apreciava muito, também, o churrasco de ovelha (costela, paleta e quarto). Assava-se na brasa o churrasco com couro (costilhares e de matambres) e os sem couro (principalmente de costela e de alcatra). A carne de caça (veados, pacas, tatús, capivaras, porcos-do-mato, etc.) era cobiçada quando cozida e ensopada na panela e bem temperada, para tirar o gosto “forte” da carne escura. A carne moqueada era o prato principal nas grandes festas. O charque de gado (ou carne-de-sol), quando bem seco, fazia-se cozido com farofa ou guisado com arroz, enquanto que, fresco (chamava-se “frescal”), era usado para assar ao forno, adicionando-lhe molho de cebola.
A “canjica” (extraída do milho maduro e pilado, branca ou amarela, misturada com água) também era um prato muito comum. Narrando um episódio familiar ocorrido em São José dos Pinhais, em 1855, Strobel conta a primeira experiência que seu pai e um amigo tiveram com este prato: “Aqui também se acostumaram à principal refeição brasileira: feijão preto, farinha de milho ou mandioca e charque De vez em quando também tinha canjica. Quando comeram canjica pela primeira vez, pensaram que a cozinheira tinha esquecido de salgar, e colocaram sal, piorando mais o gosto. Com o tempo foram se acostumando a comê-la. Nós também, crianças, aprendemos a apreciá-la, principalmente se preparado com leite e açúcar” (STROBEL, 1987, p. 41).
Tratando do toucinho e da introdução da gordura animal nos hábitos alimentares do caboclo, registramos que:
O toucinho existia em tôdas as despensas, convenientemente lanhado e salgado e suspenso, em largas mantas, soôbre a fumaça dos braseiros. Era usado geralmente em natureza, para os temperos e frituras, aproveitando-se-lhe o torresmo, que entrava na composição de mais de um prato.
A gordura foi contribuição lusitana à culinária nacional. Ela se infiltrou na magra cozinha indígena, representada pelas farinhas e pelas enxutas carnes de caça, através do azeite, das ôlhas suculentas, dos recheios compactos e, sobretudo, do leitão. E entrou ali como só poderia ter entrado naquela época de paladares incultos e apetites desbragados, em excesso, untando tudo, pingando, coalhando à superfície dos pratos (RIESEMBERG, 1969, p. 104).
Desde cedo, nosso caboclo aprendeu a saborear o leite e seus derivados (queijo, coalhada, requeijão e manteiga), principalmente o “camargo”, que é o leite fresco, quente e espumoso, melhor com um pouquinho de café, tomado ao clarear do dia ainda na estrebaria ou na mangueira, durante a ordenha.
Os doces mais comuns eram: amor-em-pedaço, ambrosia, beijo-de-moça, biscoito de amendoim, melado, rapadura, bolo de aipim, bolo de fubá, bolo de polvilho, bom-bocado, broinha de milho, casadinho, doce de abóbora, doce de leite, fios de ovos, moganga-de-leite, goiabada, não-me-toque, ovos nevados, pão-de-ló, pé-de-moleque, marmelada, abóbora em calda, fatia-do-céu, pudim de pão, quindim, sonho-de-valsa, pão-de-ló e arroz doce. Na culinária antiga, o úmido e escuro açúcar mascavo era mais usado do que o acúçar cristal. Muito comum era o bolinho-na-graxa, feito com fubá, leite, ovos e fermento, fritado até dourar num panelão de banha e depois revestido com açúcar cristalizado.
O melhor mel era aquele obtido nas colméias da abelha “mirim”, existente nas partes ôcas das árvores, não encontrado em favos, mas em saquinhos, que os índios ensinaram como extrair, “cada um dos quais pode conter de uma colher de chá a uma colher de mesa do líquido puro. O sabor é bastante precioso e ligeiramente ácido o mais das vezes. O mel tem sempre o gosto fresco, mesmo com o tempo mais abafadiço” (BIGG-WITHER, 1974, p. 165).
Entre as bebidas do passado, eram comuns: aguardente pura (cachaça, branquinha, caninha, etc.) , cachaça com losna ou com mentruz, chá de mate (torrado), mate-doce (com leite quente e açúcar ao invés de água), chimarrão (xucro, amargo, com água quente), café de tropeiro ou café de coador (este, sempre super-açucarado), licores feitos a partir da adição à cachaça de frutas regionais, e vinhos (obtidos pela fermentação natural de frutinhas silvestres, como a guabiroba, a pitanga, o araçá, a jaboticaba e a cereja).
O “café de tropeiro”, pelo largo uso diário, compreendia o uso do pó-de-café, torrado e moído, sem o pano coador. Era feito quando “uma vasilha com água é colocada diretamente nas brasas do fogo de chão para ferver, adicionando-se em seguida o café. Quando levanta a fervura e o pó vem todo para cima, um pequeno tição é introduzido dentro da vasilha. Assim o pó se assenta e não precisa coador. E está pronto o melhor e mais saboroso café do mundo” (MATOS, 1979, p. 26).
Tratando da contribuição dos imigrantes pioneiros à culinária regional no final do Século XIX, lembramos as hortaliças, inicialmente produzidas nas chácaras coloniais alemãs, cultura que, em seguida, foi ampliada pelos poloneses e italianos, num sortimento para saladas que ia desde a cenoura, o pepino, a beterraba, a batata paraguaia, o xuxú, o tomate, até as folhas do repolho, da couve, do radite e da alface, mas, que não eram hábito do caboclo.
3. 5 Os Remédios Caseiros no Contestado antigo
No Contestado não existia médicos, que eram substituídos por curandeiros, aquelas pessoas mais experientes na lida com as plantas e as ervas consideradas medicinais, ou curativas (hoje, chama-se “fitoterapia”), nem remédios químicos. Mesmo assim, o caboclo sobrevivia a muitas doenças, graças a uma série de conhecimentos, adquiridos dos índios, dos negros e dos desbravadores, que passaram de geração para geração, com “fórmulas” sempre acrescidas de novas descobertas.
Chás de “cipó de milone” e de “hortelã” eram aplicados para a cura de vermes, bichas, ou para a limpeza do sangue. Para quem estava gripado, bons expectorantes eram “sebo de ovelha” aplicado no peito como emplastro, ou gotas de querosene tomadas via oral. Para tosse forte e bronquite, tomava-se xarope de “agrião” natural, fervido com açúcar queimado, enquanto que, para a coqueluche (dizia-se tosse-comprida) tomava-se leite de égua e chá de “jasmim-de-cachorro” (nada mais do que fezes secas de cães). Para se livrar de furúnculos ou licenços, aplicava-se um emplastro de farinha de mandioca cozida e colocada quente por cima, ou cortava-se uma frutinha de “juá”, colocando-se a metade cortada por cima. As mulheres combatiam o corrimento vaginal com chá de “sana-flor” ou de “erva-tostão”.
O remédio para crianças que urinavam na cama era chá de “broto de samambaia”. Para reumatismo, tomava-se chá feito de raiz da árvore “primavera” ou da raiz de “urtigão brabo” misturada à cachaça, ou esfregando no local “folha de tuna”. As queimaduras da pele eram curadas com “água de pepino maduro”, com nata fresca, ou se utilizando uma ou mais clara de ovo batidas. Em feridas abertas na pele, aplicava-se a “folha de badana” ou de “língua de vaca”, esquentadas e usadas nos curativos. Para estancar sangue em feridas recentes, utilizava-se pó de café, açúcar branco, cinza de chapéus de pano e, ainda, uma mistura de tudo isso com teia de aranha. Quando a pessoa pegava piolho, sarna ou outras doenças que provocavam coceira, o combate era feito com “sabão de cinza de madeira de pinho”, fervida e coada, e com enxofre misturado na banha, aplicados em todo o corpo.
Quando uma criança apresentava sintomas de “estar bichada”, isto é, com vermes intestinais, para acalmar as bichas, que se alvoroçavam na lua cheia, bastava um chá de hortelã. Esperava-se a lua minguante para dar-lhe um “lombrigueiro” (coquetel de sementes torradas de abóbora, mel de abelha mirim, chá de laranja e de losna, alho, suco da erva “santa-maria” e óleo de rícino) e derrubá-las. Quando alguém apresentava sarna na pele, aplicava-se uma espécie de pomada, com banha de porco, enxofre e pólvora.
Para doenças do fígado e mesmo do estômago, tomava-se o chá de “marsela”, de “gervão”, de “losna”, de “erva de boldo” e outras. Crianças raquíticas e molengas, sem apetite, tomavam “alfavaca” em cachaça. Quando veio o alho, seu chá era muito usado para amenizar dor de dente ou outras dores no corpo, enquanto que para cicatrizar a gengiva após a queda ou extração de dentes, tomava-se chá de “arrueira”. Para dores de rins, tomava-se chá de “carqueja” (só as plantas com folhas de três quinas). Para dores na bexiga, remédio era chá de raiz de “salsa”. Para extrair bernes, esquentava-se o orifício aparente na pele com a brasa do fumo do palheiro ou cobria-se a abertura com toucinho morno. O mel silvestre substituía o açúcar na maioria das composições caseiras para curas.
Destacavam-se ainda, a aplicação de chá de casca do “ipê” para dor de estômago, o chá de “palha roxa” ou de “cabelo de milho” para os diabéticos, o chá de “ponte-alívio” para dor de cabeça, o chá de “artimígio” para cólicas de menstruação, a “erva-de-bicho” para hemorróidas, o “marmelo seco”, a “casca de jaboticaba” e a “cachaça canforada” para cortar disenterias. A “flor do sabugueiro” tinha utilidades, sob a forma de chá, para quem tinha sarampo recolhido, observando-se três dias de resguardo. O chá ou o banho com água da raiz de “São João” (frutinha de árvore) era excelente para o amarelão. Uma das formas de baixar a febre era desmanchando fermento de pão, engrossado com trigo e aplicado na planta dos pés. Ingerindo-se “flor de enxofre” com a comida, limpava-se a pele. Quando a criança estava com míngua, davam-lhe uma colher de chá de “erva-doce”, azeite e três gotas de vinagre.
3. 6 Nas horas de folga, tempo de lazer
O caboclo não tinha muitas oportunidades de diversão. Sua jornada de trabalho mínima era de 12 horas, geralmente de segunda-feira a sábado. Ele seguia o nascer e o pôr-do-sol, aguardando o “sétimo dia”. Como era hábito nacional o respeito ao “domingo-de-guarda”, a véspera – o sábado à noite – era o maior momento do lazer íntimo, do descanso, do encontro para a prosa com os amigos, para a promoção de bailes em bodegas ou botecos de beiras de estradas, em galpões ou em alguma casa, como os “arrasta-pés” e os “fandangos”. O domingo era dia de festa quando um rezador ou um padre chegava na casa de um fazendeiro mais “abonado” e chamava os vizinhos para os batizados, crismas e casamentos, muitos dos quais coletivos, o que acontecia pela manhã e, à tarde, era hora de alegria, de jogos, de brincadeiras, de muito divertimento (ou ainda, de brigas). Quando um fazendeiro-rico “casava a filha”, a “festança” durava de três dias a uma semana, varando dias e noites.
Uma vez por mês era costume o caboclo ir “pra vila” com sua família, para comprar os gêneros alimentícios, roupas ou utensílios de que necessitava, isso quando tinha dinheiro; aquele que produzia artesanato em madeira e couro, tinha a oportunidade de compras por escambo com o “dono da venda”; as “trocas” eram sérias: isso por aquilo. Se a “chegadinha” ao povoado era solitária, não deixava por menos: a “escapadinha” à “zona” para o “instante” com a mulher-da-vida, a “china” ou “chinoca”, era certa. “Nada como uma boa trepada”, dizia ele.
Nas grandes festas religiosas (Santa Cruz, Bom Jesus, do Divino Espírito Santo, entre outras), dos santos padroeiros das capelas (São Sebastião, São João, São Gonçalo, etc.), que eram erguidas aqui e acolá, ou nas datas de efemérides cívicas - quando respeitadas - é que se realizavam as cavalhadas, os rodeios e as manifestações grupais (hoje tidas como folclóricas), que honravam e preservavam as tradições étnico-culturais.
Na origem das danças no Extremo-Sul Brasileiro, em especial daquelas que, ouvindo nossos caboclos, foram trazidas para o Contestado pelos gaúchos rio-grandenses, como o tango, milonga, guarânia, polquita corrientina, bailado, chula, molambo e samba, destacamos a observação sobre a internacionalização dos ritmos musicais na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e no Sul do Brasil:
Na progressão do caldeamento cultural e regional e na mistura, sempre mais rica do amálgama cultural conessulista, hoje já não se pode separar alguns ritmos musicais em função da sua natividade. Muitos deles vieram de fora, mas foram adaptados e modificados aqui. Outros nasceram aqui e ganharam notoriedade internacional. Entre eles estão o chamamé argentino, o bugio sulbrasileiro, a guarânia e a polca paraguaias, a vaneira ou chamarrita, que na Argentina se chama Rasguido Dobre e que nasceu na Centro-América, com os negros de Cuba e Haiti para depois penetrar na Espanha e Portugal, de onde veio para o Cone Sul da América (FRANCO, 1993, p. 211-212).
As primitivas danças rio-grandenses constituiam o repertório dos fandangos e as músicas tinham duas partes diferentes: as cantadas e as dançadas com sapateados. “O sapateado, a roda, as quadras declamadas, o bater palmas, os cumprimentos, o furtar-par e outros tempos de marcação tornavam estas danças muito animadas” (LAYTANO, 1952, p. 48).
3. 7 A Linguagem no Contestado antigo
A língua portuguesa sempre sofreu modificações na sua adaptação no Brasil. No tempo da Guerra do Contestado, até 1946, escrevia-se um palavreado que hoje chega a ser estranho, como, por exemplo: differente, offerecer, commercio, commum, annos, bello, collecção, attenção, catholico, theatro, pharmacia, ahi, physionomia, architecto, idéa, principaes, systema, exactidão, escriptos, etc.
O caboclo sempre aplicou muito a “lei do menor esforço”, numa cultura baseada mais no ouvir do que no ler, evitando os grupos consonantais que exigissem esforço nas pronúncias. No modo de falar ou nos escritos antigos, encontramos, genericamente, por exemplo: coroné (coronel), hôme (homem), táva (estava), in riba de (ao redor de), dotô (estudioso), devarde (debalde), inté (até), inguli (engolir), cumpade (compadre), orêia (orelhas), vortêmo (voltamos), trabáio (trabalho), mió (melhor), vancê (você), nóis (nós), tarvêis (talvez), truce (trouxe), entonce (então), prá (para), moiáda (molhada), muié (mulher), barúio (barulho), ficâmo (ficamos), sorto (solto), lúis (luz), das veis (às vezes), etc., sem contar: bebê, comê, andá, casá, cavalgá, assim tirando o “r” do final, da mesma forma como os índios desprezavam o “s” do final das palavras e aboliam o plural.
Para obter ou dar significados, o caboclo pardo criou ou adotou novas palavras, hoje integradas na sua cultura, destacando-se algumas expressões, como: voltiá (derrubar a rês), pitá (fumar palheiro), matrero (astuto), paleta (omoplata do animal), bombero (espião), metê o pau (criticar). Outros vocábulos foram adotados do vocabulário gaúcho, que por sua vez tinha muito de procedência árabe, como: açude (“ac-çude”, águas represadas por meio de taipas), alazão (“al-hasan”, vigoroso, forte, de pelo de cavalo), xaropear (“xarabe”, importunar, molestar), além de: charque, quintal, arroba, elixir, bairro, arrabalde, etc.
Lembramos as expressões e frases feitas no interior do Paraná, também aqui presentes: “Apagou o pito” (sossegou), “levou um sabão” (reprimenda), “ficar na moita” (à espera em silêncio), “soltar a língua” (não guardar segredo), “agarrar o mato” (ir embora), “num abrir e fechar dos olhos” (num instante), “metido a sebo” (intrometido), “metido a besta” (convencido), “teimoso pra burro” (muito teimoso), “fogo de palha” (inconstante), “arrumar sarna pra se coçar” (arranjar confusão), ao que acrescentamos: “agüentar o repuxo” (suportar a dor), “titica de galinha” (coisa sem importância), “barata tonta” (perdido, sem direção), “virar o fio” (brigar), “aborrido” (aborrecido), “em cima do muro” (neutro), “sujeito água morna” (fraco, indeciso), “isso vai dá bode” (vai dar confusão).
Do tropeirismo, o homem do Contestado herdou diversas expressões típicas, tais como: “Teimoso como uma mula”, “Deu com os burros n’água”, “Isso é uma burrice”, “Vou picar a mula”, “Você é uma besta quadrada”, “Isso é bom pra burro”, “Você disse uma besteira”, “Ele está emburrado” ou “Deixe de ser besta”. Herdou também algumas expressões curiosas, como: “Burro gosta de ouvir só o seu zurro”, “Burro com livro é doutor”, “Cada mula com a sua cangalha”, “Burro não se amansa, se conforma”, “Burro que muito zurra pede cabresto”, “Mula de orelha baixa é sinal de chuva”.
Do caipira paulista, o caboclo do Contestado adotou extenso vocabulário, que aqui tem idêntico significado, como observamos em Folclore Brasileiro – São Paulo (1980), de Hélio Damante: Banzé: confusão; cafundó: lugar distante, ermo, desértico; calombo: inchação, protuberância; catinga: mau cheiro, fedor intenso; chupim: aproveitador para si do que é dos outros; direito: sério, correto; estrupício ou estripulia: desordem, barulho; farofa: gabolice; faxina: limpeza; grana: dinheiro; levado: moleque, safadinho; moça: jovem, senhorita; mundana: mulher-da-vida; no mais: ademais, além disso; pamonha: lerdo, mole; pito: repreensão, advertência; puta: prostituta; quirera: coisa insignificante; rabeira: ficar para trás; sapeca: levado; supimpa: ótimo, excelente; tapera: casvelha, abandonada; trabuco: garrucha; e varar: atravessar.
4 Atividades econômicas no Contestado antigo
Tropeirismo – Pastoreio - Extrativismo
4. 1 Tropeirismo
Estabelecendo-se no Território do Contestado no início do Século XIX, o homem veio a praticar o tropeirismo nas jornadas que se deslocavam a partir desta zona, em direção aos Campos Gerais do Paraná, à Região Missioneira Gaúcha ou ao Litoral Catarinense, para a compra de mantimentos e utensílios, o que se fazia lá com o produto da venda de muares e bovinos criados nas fazendas.
As tropas xucras percorreram verticalmente o sertão catarinense por quase duzentos anos, conduzindo muares dos pampas aos muladeiros do vale do Paraíba, onde eram comercializados. As jornadas do Sul ao Norte duravam muitos meses, ao ritmo de três léguas (18 km) por dia. Depois das mulas, os tropeiros passaram ao tropeirismo de carga e ao transporte do gado, igualmente recolhido nos campos sulinos e levados para o norte. Nas invernadas, durante os descansos das tropas, a paisagem natural da Região do Contestado reteve muitos tropeiros paulistas e paranaenses, que aqui se estabeleceram. Ao longo dos caminhos, os pousos foram dando origem a currais, fazendas e povoados. A atividade do tropeirismo revelou uma soma de traços culturais que influenciaram a herança cultural do caboclo, influindo nos hábitos alimentares, na indumentária, no lazer, na linguagem, na medicina e, no folclore das histórias, lendas e mitos.
As origens do tropeirismo estão intimamente ligadas às necessidades de transporte de cargas no Sudeste do País, principalmente na ligação da costa com as minas do interior. Quando dos descobrimentos auríferos no Brasil no final do Século XVII e início do XVIII, atraídos pela cobiça, milhares de recém-chegados foram buscar a riqueza no interior. Enquanto cresciam as necessidades por transporte, até que fosse intensificada a importação de negros, os paulistas arrebanhavam e vendiam índios, suprindo a falta de gente para todos os tipos de trabalhos braçais. Os bandeirantes, ao caçar índios Guarani nas reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul, encontraram nas savanas sulistas milhões de cabeças de gado bovino, caprino e muar.
Com a abertura da Estrada Real, numerosas manadas xucras, arrebanhadas nas campinas do Prata, passaram a ser encaminhadas para São Paulo e, daí, escoadas para outras direções, principalmente às minas, onde os muares se impuseram como cargueiros ideais devido as suas qualidades inatas para este serviço. Este escoamento veio a criar no Sul do Brasil o intenso tráfego de muares cargueiros em tropas. Tanto, que logo a Estrada Real passou a ser chamada de Estrada das Tropas. E as tropas fizeram surgir o tropeirismo, evidenciando a figura dos seus condutores: os tropeiros.
Se as tropas eram uma só, os tropeiros eram diversos. Havia os comerciantes de muares, que iam pessoalmente às fontes buscar animais e os conduziam para vendê-los nas feiras paulistas; os empregados das fazendas, que dirigiam as manadas vendidas a mando do patrão; os que eram proprietários das manadas e alugavam seus serviços, ou seja, vendiam a capacidade de carga de seus animais. Uma prática dos tropeiros do Extremo-Sul era reservar alguns lotes de animais (de sete a onze bestas cada lote) após a venda da manada, aproveitando-os para o transporte de mercadorias no retorno, para si, para o patrão, ou para atender encomendas de bodegueiros de animais. Em comum, tinham os tropeiros o fato de serem os condutores das tropas.
Ao longo dos caminhos, em locais de terras devolutas previamente escolhidas e geralmente em campo aberto, com pasto suculento e boa aguada, os tropeiros levantavam choças, de pau-a-pique, sem paredes e cobertas de palha, para servirem de “encosto”. Logo, surgiram aqueles que tomavam posse destes locais de paradas, cercavam-nos como campos fechados (potreiros), substituíam a palhoça por um rancho rústico, para alugá-los aos tropeiros e, assim, transformavam os encostos em “pousos”.
Na medida em que os encostos se transformavam em pousos, o local atraia para suas proximidades outro posseiro, concorrente, que também construía seu rancho e fazia surgir novo pouso. A abertura da venda, ou bodega, era o sinal de que aquele pouso prometia ser bom. E aí, vinha um terceiro homem, e os ranchos cresciam, passando a ser chamados estalagens. Encostos, pousos, hospedarias, bodegas, fazendolas, com potreiros ou currais, eram as atrações aos tropeiros viajantes, alguns dos quais vieram a escolher nossa região para nova moradia. Fixando-se, promoviam o aparecimento de núcleos populacionais e, assim, no decorrer do tempo, fizeram surgir as primeiras povoações, mais tarde vilas, no Território do Contestado.
A par de fazendeiros mais antigos que, na condição de sesmeiros, ocuparam desde cedo as terras de campos, no Rio Grande do Sul e mesmo nos Campos de Lages, muitos tropeiros paulistas e paranaenses enriqueceram rapidamente e, no início, sem abandonar a atividade, voltavam aos caminhos, escolhiam as melhores porções de terras-sem-dono nos seus percursos e as requeriam como sesmarias, ou delas se apossavam. Erguiam os currais e logo faziam ali surgir uma estância, geralmente suas futuras moradas. Nos campos e campinas, assim nasciam as fazendas de criação.
Muitos dos ex-tropeiros, agora novos-fazendeiros, seguindo tradições familiares, lançaram-se à criação de gado bovino, oportunizando emprego para outros tipos de homens: o peão, especializado nas lidas campeiras com o gado vacum; o mateiro, profundo conhecedor das matas e explorador dos ervais; e, o roceiro, o plantador de cereais e criador de porcos e galinhas; e, ainda, para novos tropeiros, pois a atividade era mantida. Também, por arrendamento, permitiam o surgimento de mais pousos nos rincões e cantões das propriedades. Para este conjunto todo, acorriam os profissionais de ofícios – seleiros e ferreiros, por exemplo – e a população aumentava.
No final do Século XIX e na entrada dos anos 1900, o tropeirismo enraizou-se em locais cada vez mais internos da Região do Contestado, usando as primeiras estradas abertas pelo pisotear dos animais sobre antigos caminhos, além do percursos da Estrada Real e das veredas das Missões, como nos traçados que se observam em velhos mapas.
O tropeirismo cargueiro foi também importantíssimo para o desenvolvimento da indústria do mate no interior dos três estados do Sul, promovendo o transporte desde os armazéns, em que os ervateiros depositavam o produto da extração, ou desde os rudimentares barbaquás, aos engenhos nas vilas, com destaque para Curitiba e Joinville e, destas para embarque nos portos oceânicos. Temos assim, a atividade do tropeirismo e a figura do tropeiro, com raízes na cultura dos paranaenses, presentes nos primórdios da História do Contestado, responsáveis pelo surgimento dos primitivos pousos e das invernadas de Curitibanos e de Campos Novos, em Santa Catarina, e de Porto União da Vitória e de Rio Negro, no Paraná. Também foi a responsável pelas entradas no sertão, ligando posses, fazendas, povoados e vilas entre si e, estas, com outras regiões, promovendo processos de aculturação recíproca entre os tropeiros e os fazendeiros, os peões e os ervateiros, nos ciclos econômicos do muar, do gado bovino, do couro e da erva-mate, que perduraram durante cerca de 200 anos.
4. 2 Pastoreio
As frentes expansionistas paulistas atingiram os Campos de Curitiba, daí as margens dos rios Negro e Iguaçu, os Campos de Guarapuava e de Palmas, e os criatórios naturais de muares e bovinos no Rio Grande do Sul. Com a abertura do “Caminho dos Tropeiros”, esta frente paulista irrompeu no setor Leste do Território Contestado, promovendo a fundação da Vila de Lages que, por sua vez, abriu novas frentes, possibilitando a ocupação de Curitibanos, Campos Novos e outros, fazendo surgir os primeiros “pousos”, “currais” e “registros” e, a seguir, proporcionando o nascimento das primeiras fazendas de criação de gado no Planalto Catarinense.
No Sul, dependendo da área, havia várias denominações para os imóveis rurais, como estância, fazenda, fazendola, cabanha, chácara, granja, quinta, etc. Em Santa Catarina, os latifúndios do Planalto eram conhecidos mais como “fazendas”, daí porque usaremos apenas este termo, mesmo nos referindo às grandes e às pequenas propriedades
Nas sedes das fazendas maiores, posicionadas em ponto estratégico das propriedades, em lugares mais altos, eram construídas as edificações, geralmente de madeira lascada e cobertas com tabuinhas, compreendendo: a casa do fazendeiro, um sobrado bem repartido e com varanda; próxima a esta, a casa do capataz, menor, mas não menos primorosa; a casa dos peões, com as dependências para a peonada; e o galpão, abrigo para homens, animais, feno, equipamentos, etc. e onde os peões se reuniam ao redor do fogo para contar seus causos, sorver o mate amargo, trovar e cantar.
As propriedades não eram cercadas, como vieram a ser, depois, com arame farpado. Usava-se muito a cerca de ripas na sede, troncos partidos ou tábuas lascadas para as mangueiras e currais e a cerca de taipa-de-pedra para demarcar alguns setores. Os fazendeiros erguiam outras determinadas instalações que também eram indispensáveis para as atividades cotidianas e com o gado, como as porteiras, tronqueiras e cancelas, as peras, os bretes, os troncos, os palanques, as baias, os banheiros, as estrebarias e os chiqueiros. No interior das fazendas, havia, ainda, os piquetes próximos às sedes (pastagem com bebedouro, cocho e arvoredo), as invernadas (de bom pasto e boa aguada para a engorda dos animais) e os potreiros, áreas maiores (usados para os rodeios e controles de pastagens e de reprodução do gado).
De modo geral, o estancieiro, criador ou fazendeiro, residiam na sua propriedade, mas, não raro, construíam casas nas vilas para suas famílias. Os empregados de uma fazenda eram contratados conforme o tamanho da fazenda e as necessidades diárias para mantê-la. O capataz era o gerente-geral, ou o administrador, competindo-lhe a direção dos empregados, a distribuição dos serviços, sempre com participação ativa no campo. Os peões tinham o trabalho direto com o gado. Também eram considerados peões: o caseiro, o galponeiro, o tropeiro, o posteiro, o tropeiro, o cozinheiro, o carpinteiro, o seleiro, o ferreiro e outros artesãos.
Muito conhecidas nas fazendas eram as figuras do arrendatário e do invernador. O arrendatário era quem alugava uma parte da fazenda, ou até toda ela, nesta condição, substituindo a figura do fazendeiro, agindo como se o fosse. O invernador apenas arrendava o campo do fazendeiro para engordar seu próprio gado. Havia ainda o agregado, a quem o dono da fazenda arrendava uma parte das terras, nas extremidades mais distantes, onde ele agia como posteiro e como roceiro, dividindo (geralmente “às meias” ou “às terças”) o produto do cultivo de milho, do feijão, da batata, da mandioca e até da pequena criação de porcos e galinhas.
Especificamente no Centro-Oeste Catarinense, há de se considerar a existência de dois tipos de fazendas: as de criação e as de cultura, se bem que elas mantinham praticamente ambas as atividades, mas a diferenciação se faz sobre a predominância da produção. As propriedades em terras mais de campos, seguiam o modelo rio-grandense, enquanto que aquelas com mais mato do que pastagens e, devido ao maior número de acentuados desníveis, mantinham lavouras como atividade principal, da roça de milho à plantação de fumo. Não fosse o sal e o açúcar, peças de ferro e aço, louças e quinquilharias, as fazendas teriam total subsistência própria, pois nelas eram produzidos não só os alimentos, como o material para o trabalho. O fornecimento de mercadorias em falta era feito nas vendas, bodegas ou armazéns das vilas próximas.
4. 3 Extrativismo
ERVA-MATE
Assim como a Região do Contestado assistiu o processo da integração na indústria madeireira na primeira metade do Século XX, reunindo o extrativismo (corte das árvores na mata), o aproveitamento (para lenha, carvão, madeiras) o primeiro transporte (toras puxadas por bois ou em carroções), a industrialização básica primária (em tábuas, nas serrarias), a transformação (pasta mecânica, celulose e papel), o segundo transporte (pela estrada de ferro), o comércio (vendas internas e exportações), a indústria ervateira aqui também sempre funcionou de forma integrada, somando: a extração (poda das erveiras), o primeiro transporte (nas costas dos mateiros ou em lombo de burros), o aproveitamento (para chimarrão), a preparação primária (secagem em carijos ou barbaquás), a industrialização básica (etapa do cancheamento), a transformação (em pó nos engenhos), o segundo transporte (por carroças e ferrovia), e o comércio (para os mercados interno e externo). E, assim, para os caboclos do sertão catarinense, como a tábua de pinho passava por longo processo antes de servir à sua moradia, a erva-mate igualmente passava por diversas fases até se constituir como seu produto alimentar.
Tradicionalmente, a extração da erva-mate é efetuada no interior das florestas, junto aos pinhais, representando uma das rendas mais significativas da região. O produto é obtido das folhas da árvore (Ilex paraguaiensis) e posteriormente beneficiado nas ervateiras, daí seguindo, ou para consumo como “chimarrão”, hábito largamente difundido no sul do Brasil, ou para a transformação em “chá queimado”.
As atividades da erva-mate eram tradicionais no Planalto de Santa Catarina, sempre ligadas à exploração dos ervais naturais no Oeste Catarinense, também quando da existência da Colônia Militar de Chapecó, instalada no ano de 1882 na Campina de Xanxerê, em região próxima à principal Vereda das Missões.O sucesso da colônia teve como principal baluarte a abundância da erva-mate na região, de tal forma que os colonos que recebiam as terras tinham no seu corte e venda a única maneira de conseguir dinheiro. A formação de lavouras respondia apenas à necessidade de subsistência, em função da inexistência de mercado e de condições para o transporte dos produtos a outras regiões, para comercialização. Enquanto perdurou a exportação da erva-mate e seu preço se manteve alto, mantiveram-se boas as condições de vida dos seus habitantes (POLI, 1995, p. 83-84).
Na mata, os ervateiros faziam todo o processo empírico do preparo da erva-mate, iniciando pelo corte a facão, o sapeco preliminar para a retirada da umidade das folhas, a secagem final nos carijos, deixando as fases finais para os engenhos. “A erva-mate trouxe prosperidade à nossa terra por mais de meio século, mobilizando a mão-de-obra necessária à sua industrialização” (ALMEIDA, 1975, p. 112).
Cada ano, de julho a setembro, o caboclo, de facão afiado na mão, mete-se pelos matos onde abunda a ilex, e de herval em herval anda à procura das árvores que não foram podadas na safra anterior. E assim vai de árvore em árvore, desbastando-as, golpeando-lhes os galhos de baixo para cima e amontoando os ramos de espaço em espaço; como o cauchêro, caminha assim quasi o dia todo, percorrendo grandes distâncias. Depois reune todos os ramos cortados no local escolhido para a primeira fase de beneficiamento: a sapéca. Acêsa aí uma fogueira, vai passando galho por galho, ligeiramente sôbre as chamas; as folhas murcham crepitando. Québra então os galhos maiores e os vai colocando num cercado de páus, o raído, de modo a formar um fardo de forma cúbica que é amarrado com cipós (LUZ, 1952, p. 52).
Desde o tempo mais antigo, o ponto-de-partida da indústria do mate está no extrativismo vegetal, ou seja, no corte da árvore na floresta. A indústria ervateira tem seu primeiro referencial no corte (poda) das erveiras à foice ou facão. A atividade é considerada extrativista rural até a fase do “cancheamento”, depois de passar pelo “sapeco”, da segunda secagem em “carijos” ou em “barbaquás” e da “trituração” das folhas em engenhos. A etapa da industrialização do mate corresponde ao beneficiamento, que nada mais é do que uma fase complementar de preparo, de trituração da erva cancheada, dando-lhe melhor apresentação na embalagem e na rotulagem do produto para o consumidor final.
O Chimarrão na Cultura do Contestado
O mais antigo uso conhecido da erva-mate prende-se aos índios peruanos Quíchua, à qual pertencia à dinastia Inca. O próprio vocábulo peruano “mati”, hoje “mate” é originário dos Quíchua. O primitivo hábito indígena de tomar o mate em cuia foi constatado pelos conquistadores espanhóis quando o produto alimentar foi encontrado nos túmulos pré-colombianos de Ancon, próximo a Lima, onde a palavra “máti” siginificava “cuia”, “cabaça” ou “porongo”. Os grupos indígenas primitivos de Nazca também usavam o mate. “Esse nome passou do recipiente ao seu conteúdo, isto é, a bebida feita da infusão das folhas de Herva tomada em Mate (cuia). Adoptaram-no com essa mesma significação todos os povos sul-americanos, e assim se fixou e universalizou” (MARTINS, 1926, p. 13).
Os ervais nativos concentrados, entretanto, não se localizavam no Peru, mas, ao Sul e na parte Oriental da Cordilheira dos Andes, onde os Quíchua e, certamente, também outros aborígenes andinos vinham fazer a coleta anual. Talvez aí esteja uma das justificativas para a presença de vestígios dos Inca em alguns locais das fronteiras Oeste, Sudoeste e Sul do Brasil. Quando estudamos os índios do cone Sul-Americano e do Sul-Brasileiro, vimos que no Brasil do tempo do Descobrimento a Região do Contestado era o espaço natural dos Gê, descendentes dos Guaianá (inimigos dos Guarani). Os ervais nativos existiam, assim, num amplo território, em parte habitado pelos Gê e em parte pelos Guarani. A erva-mate tornou-se conhecida dos brancos, de um lado, quando os espanhóis tiveram contato com os Inca no Peru e, de outro, quando contataram os Guarani no Paraguai, mas isso não significa que os Gê desconheciam a erva. Em 1500, os sucessores dos Guaianá, integrantes do tronco lingüístico grupo Macro-Gê - os Kaigang - já conheciam a erva-mate, já preparavam a erva e já eram adeptos da sua infusão, tanto quanto os Guarani. O “beber mate” fazia-se pela obtenção do chá, ao natural, ou seja do líquido resultante do contato direto das folhas da planta com a água.
Os gaúchos espanhóis chamavam os animais que se criavam soltos, de forma selvagem, como os cachorros, os muares, os cavalos e o gado bovino, de “cimarrón”, palavra castelhana que queria dizer: xucro, selvagem, amargo, bárbaro, bruto. Etimologicamente, a palavra “cima” referia-se às regiões altas e pouco acessíveis, onde a gadaria e cavalhada se escondiam dos captores. Tomando contato com a erva-mate pura, amarga, rude, a ela também vieram a se referir com este nome. Assim, o chá da erva-mate teria sido denominado de “cimarrón” . Quando os colonizadores portugueses adentraram o Prata, aportuguesaram o vocábulo, que virou “chimarrão”.
A bebida, que originalmente era “máti” para os peruanos Quíchua, “kukuai” para os botocudos Héta, “caá-í” para os Guarani, “congõn” para os Gê, “cóquín” para os Kaigang, depois conhecida como “la provechosa” e “yerba” para os espanhóis, “tererê” (com água fria) ou “cimarrón” (com água quente) para os castelhanos, “congonha” para os portugueses e “chimarrão” para os brasileiros, mantém, assim, vínculo milenar com os povos da América do Sul. Lembramos que, da mesma forma como o índio Guarani, o castelhano, o português, o luso-brasileiro e sua mestiçagem nos pampas foram os que, basicamente, originaram o gaúcho no Rio Grande do Sul, o índio Gê, mais o português, o luso-brasileiro e sua mestiçagem originaram o curitibano nos interiores do Paraná. Ambos, gaúchos e curitibanos – formadores do caboclos do Território Contestado - antes de virem para esta região - terra dos Gê - conheciam a erva e tomavam mate, dando continuidade ao mesmo hábito já propagado entre todos os aborígenes, habitantes mais antigos que os entecederam aqui.
No Brasil, se o Rio Grande do Sul nunca apareceu na liderança da produção de erva-mate (por possuir poucos ervais), jamais perdeu o título de maior consumidor do produto, pois neste Estado é, historicamente, onde mais se toma chimarrão. “[...] O uso dessa bebida é geral aqui. Tomasse-o ao levantar da cama e, depois, várias vezes ao dia. A chaleira d’água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entra na casa, se lhe oferece o mate” (SAINT’HILAIRE, 1935, p. 110). Mesmo assim, Paraná e Santa Catarina não ficavam muito para trás do Rio Grande do Sul em termos de consumo.
Mate, mate e mais mate! Essa a senha do planalto, a senha nas terras baixas, na floresta e no campo. Distritos inteiros, aliás, províncias inteiras, onde a gente desperta com o mate, madraceia o dia com o mate e com o mate adormece. As mulheres entram em trabalho de parto e passam o tempo de resguardo sorvendo mate e o último olhar do moribundo cai certamente sobre o mate. É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação. Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, amizade, estima e sacrifício, tudo o que é elevado e profundo e bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servil-o e tomá-lo em comum. A veneração do café e o perfumado fetichismo do chá nada são, sem sequer uma idéia da profunda significação do mate, na América do Sul, que não se pode descrever com palavras, nem cantar, nem dizer, nem pintar, nem insculpir em mármore. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 251-252).
Antes mesmo de ser aberta a Estrada das Tropas, o Porto de Paranaguá exportava para a Colônia do Sacramento, além da cal e da madeira, alguma congonha fabricada no alto da Serra. Pela mesma época parece que se difundiu inclusive em São Paulo o costume de beber mate.
Ao se espalharem as fazendas de gado ao longo e para fora da Estrada das Tropas, a erva começou a ser colhida nas matas vizinhas e preparada mais para atender as necessidades locais do que para venda. Os fazendeiros permitiam aos agregados e peões prover-se com a planta por acaso encontrada dentro da propriedade ou nas vizinhanças, à qual não atribuíam maior valor (QUEIROZ 1981, p. 31-32).
Discorrendo sobre a hospitalidade do “caboclo” da região serrana, creditada ao tempo da Guerra do Contestado, LUZ lembrou que “[...] mesmo nas moradas as mais humildes e desconfortáveis cultua-se a hospitalidade: mal entra um viajante extranho ou conhecido, logo vem a infalível chícara de café ou a cuia de chimarrão” (1952, p. 47).
A erva-mate foi, inicialmente, o grande fator de atração. Por muito tempo, quase foi a única atividade dos canoinhenses. Preços compensadores, erva-mate, representava riqueza, prosperidade. Sua influência na população é marcada: criou hábitos, que jamais desaparecerão. Em tôrno da cuia e por causa da cuia, grandes negócios se têm realizado. O hábito do chimarrão é um infatigável criador de amizades, de contactos pessoais, de solidariedade. Ele ensina a meditar, ser paciente, refletir. A cuia e a bomba constituem preocupação importante na vida diária. Como a hora do almôsso e do jantar, existe também a horinha do chimarrão” (SILVA, 1941, p. 20).
O complexo econômico-cultural da erva-mate, que perdura na Região do Contestado há mais de duzentos anos, compreende os seguintes traços: neste território existiam imensos ervais naturais; os primitivos indígenas tomavam a erva antes da chegada dos brancos; os primeiros caboclos extraíam a erva das matas e sabiam produzir rusticamente o mate; antes da abertura da Estrada Real, os caboclos catarinenses já estavam habituados ao uso do chimarrão; na metade do Século XIX, já se produzia erva-mate nos sertões do Território do Contestado; e, a erva-mate era importante produto de exportação e fonte de receitas para todos os envolvidos no ciclo produtivo. De quebra, esta riqueza do Planalto ensejou a formação do primeiro truste econômico do mate no Litoral de Santa Catarina.
Ratificamos o realce do que a erva-mate significava para a subsistência do caboclo pardo. Como boa parte dos ervais nativos localizava-se em terras devolutas, dependia-se de licenças especiais dos Estados para a extração, que eram concedidas sob apadrinhamento para os “coronéis-de-roça” ou para os “chefetes-de-aldeia”, só estes que conseguiam arrendar as árvores junto aos poderes públicos. Até o primeiro terço do Século XX, eram os grandes fazendeiros, comerciantes e industriais, portanto, que faziam suas fortunas às custas dos caboclos contratados para o trabalho braçal nas matas, da mesma forma como se fazia com os peões contratados para a lida com o gado nos campos.
6 O avanço imperialista do Sindicato Farquhar no Contestado
Imperialismo & Capitalismo
As relações capitalistas já existiam no Contestado no momento em que ocorre a Guerra do Contestado. Esta parte é dedicada à ruptura social e cultural, quando uma nova fase deste capitalismo, marcada pelo imperialismo e pelo monopólio, adentra com bastante força no então espaço livre do Contestado. Veremos que, ao olhar do opressor, a população cabocla é fadada ao desaparecimento, para viabilizar sua substituição por outra, de imigrantes-colonos, dos primeiros restando alguns sobreviventes. A limpeza da área foi radical. Foi uma guerra de extermínio. O rompimento das relações antigas de um espaço geográfico amplo e de um território livre deu-se quando os caboclos tiveram que conviver com a modernização do território, mediante a ação firme e resoluta do Estado intervencionista e de investimentos de capitais estrangeiros.
A construção da ferrovia, as madeireiras e a colonização estrangeira vêm modificar as relações sociais da comunidade cabocla com os invasores de seu território. O rompimento do mundo livre para um mundo de opressão, que começa com a pilhagem de suas terras e de seu território e termina com a intervenção sanguinária do braço armado de civis e militares, passando pelo controle do poder político, do deslocamento dos direitos individuais para a opressão do Estado, do deslocamento de idéias e vida próprias ao território livre para idéias e forças que vinham de fora e se instalaram como forças armadas no espaço dos caboclos.
6. 1 Avanço imperialista sobre o território Contestado
De origem canadense, o Trust of Toronto, responsável pela implantação dos trilhos da Companhia Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande, da madeireira Southern Brazil Lumber and Colonization Company, da Companhia Frigorífica e Pastorial, e da colonizadora Brazil Development and Colonization Company, na Região do Contestado, foi o maior conglomerado multinacional que atuou no território brasileiro no início dos anos 1900. Neste contexto, a Brazil Railway Company era a “holding” do truste com sede nos EUA, mas sustentada por investidores europeus. Para entendê-la, precisamos reportar-nos à entrada no Brasil de empreendedores norte-americanos liderados por Percival Farquhar.
Não tendo vencido como queria nos meios empresariais de New York, o grupo econômico de Farquhar lançou suas empresas para além-fronteiras, atraído pelos incentivos e facilidades que diversos países ofereciam a quem investisse em setores de infra-estrutura, carentes de capital. A amplitude dos planos de Farquhar surpreendeu desde seus sócios até seus concorrentes e não demorou para que, mobilizando milhões de libras esterlinas e dólares, atingisse o México, a América Central, as Antilhas, o Peru, o Chile, a Bolívia, o Paraguai, o Uruguai, a Argentina e, finalmente, o Brasil.
A Brazil Railway Company, fundada a 9 de novembro de 1906, em Portland, Oregon (EUA), iniciou suas atividades no Brasil com planos ambiciosos. As primeiras “vítimas” foram as principais ferrovias do Sudeste e do Sul do Brasil, incluindo a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e, finalmente, a Madeira-Mamoré . Em 1916, quando o total das vias férreas em exploração no Brasil somavam 23.491 quilômetros, a Brazil Railway já dominava quase a metade, ou seja, 11.064 km. O trutes também investiu em empresas na Bahia e em terras e fazendas de criação de gado no Centro-Oeste e no Norte do país.
Só em terras, Farquhar chegou a amealhar em todo o Brasil, através das suas diversas empresas, mais de 250.000 km2, ou seja, quase três vezes a superfície total do Estado de Santa Catarina. As administrações das companhias ligadas ao Sindicato estavam confiadas a amigos pessoais de Percival Farquhar, que seguiam à risca a determinação de obter alto lucro, não importando os meios empregados. Se o dinheiro “corria solto” entre os administradores, advogados e autoridades subornadas, tal bonança não acontecia entre os acionistas, os investidores europeus, que haviam fornecido os capitais e que, gradativamente, começaram a ficar à margem dos lucros, assim com as fatias menores dos bolos. Tão logo passou a ser impontual nos pagamentos de dividendos e bonificações aos acionistas, o Sindicato permitiu que se levantassem dúvidas, confusões e descontentamentos, fatos nocivos ao crédito brasileiro no exterior. Abalados com a I Guerra Mundial, os investimentos de Farquhar sofreram seguidos reveses econômicos em todo o mundo.
A 18 de julho de 1917, a Brazil Railway Company e suas subsidiárias entraram em regime de concordata (mesmo sem homologação da justiça brasileira) e passaram a atuar sob gerenciamento de pessoas cujos mandatos não configuravam como legítimos. Servindo-se de pretextos fúteis, deixaram de atender aos compromissos assumidos, entrando em conflito público com os acionistas-debenturistas, permitindo que continuassem a circular os títulos de dívida, em condições desmoralizadoras para o crédito brasileiro.
O governo brasileiro só reagiu quarenta anos depois. Crítica, a situação chegou a tal ponto, que todos os bens, móveis e imóveis, direitos e obrigações da Brazil Railway e suas subsidiárias, foram incorporados ao patrimônio da União , englobando seus ativos e passivos, no maior ato de encampação até hoje promovido pelo Governo Federal.
A Região do Contestado não conhecia a força do imperialismo até a chegada dos trilhos da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e até a instalação das serrarias da Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Este fato, coincidindo com a época da deflagração da Guerra do Contestado, faz com que o período de 1913 a 1916 se imponha no tempo como um referencial da História do Contestado. Antes, aqui havia um território inexplorado, com o predomínio populacional do caboclo, tendo por atividades econômicas apenas a criação de gado bovino e a extração da erva-mate, além daquelas de subsistência própria, como pequenos cultivos agrícolas, poucas criações de suínos, alguns engenhos de serrar madeira e beneficiar erva-mate, a caça de animais selvagens e a coleta de frutos silvestres. Até esta época, poucas famílias de imigrantes (alemães, poloneses e ucranianos), trazidos pelo Paraná, haviam entrado na parte Setentrional do Contestado, no eixo Porto União-Canoinhas-Mafra-Papanduva-Itaiópolis, desenvolvendo a incipiente agricultura, a rudimentar indústria, e formando os primeiros povoamentos.
O aniquilamento da oposição cabocla aos grandes interesses nacionais (tráfego de trens, extração da madeira e assentamento de imigrantes), durante a Guerra do Contestado, a alto preço, traria os primeiros indicadores de progresso para a área, até então alheia ao estágio de desenvolvimento em que se encontravam outras regiões do País, algumas bem próximas, como a faixa litorânea deste Estado ou a de Curitiba e adjacências, no Paraná.
Sem contar os teutos e eslavos colocados no Norte da Região do Contestado pelo Paraná, ainda antes da Guerra do Contestado, a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande tentou desenvolver o projeto de colonização das terras devolutas, próximas aos trilhos, no Vale do Rio do Peixe. Com algumas famílias alemãs e polonesas imigrantes, trazidas para a construção da ferrovia e desembarcadas em 1910-1912 em São Paulo, chegou a instalar núcleos perto das estações, como em Nova Galícia, Presidente Pena, Rio das Antas e Piratuba, no Vale do Rio do Peixe. O assédio hostil dos caboclos em 1914, entretanto, fez com que diversas tentativas fracassassem; os revoltosos atacaram a colônia de Rio das Antas e incendiaram as estações e casas nas colônias de Nova Galícia e Presidente Pena.
Como os fazendeiros eram muito influenciados pelo Governo do Paraná e este, por sua vez, tinha estreitas ligações econômicas com a EFSPRG e com a Lumber, eram os paranaenses quem, política e administrativamente, dominavam as terras do Planalto Norte e as situadas a Oeste do Rio do Peixe. O Estado de Santa Catarina preferia aguardar a solução para a disputa de limites, contentando-se em impor sua administração apenas até este rio, através de Curitibanos e Campos Novos e, até Canoinhas; por este motivo não realizava obras públicas em favor da população para desenvolver a região. O Paraná, por sua vez, não era tão desleixado e, a partir de Rio Negro, Porto União da Vitória e de Palmas, abriu estradas e concedeu títulos de propriedades de terras a dezenas de fazendeiros, na ânsia de consolidar o domínio do Rio do Peixe até a fronteira com a Argentina.
6. 2 Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande
A Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande – EFSPRG, já estava sob o controle acionário da Brazil Railway Company, em 1907, quando os trilhos do “trem de ferro” começaram a ser implantados no Vale do Rio do Peixe, rasgando verticalmente a Região do Contestado, no território disputado pelos Estados do Paraná e Santa Catarina.
O tempo histórico dessa ferrovia inicia por volta de 1885, quando um brasileiro voltou suas atenções ao item superficialmente mencionado nos planos de viação do Império: a possível implantação de uma ferrovia, que ligasse o Extremo-Sul do Brasil à Capital Federal, unindo, em linha vertical, o interior das províncias de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, todas elas até então apenas servidas por estradas de ferro longitudinais, cada qual fazendo a ligação do seu litoral ao interior, sem nenhum elo entre si. Esta ferrovia, em traçado paralelo e a Oeste da Estrada Real (Estrada das Tropas), deveria também possibilitar conexões com as linhas paraguaias, argentinas e uruguaias, próximas às fronteiras.
Como o Gabinete Imperial estava promovendo a colonização, estabelecendo imigrantes estrangeiros em áreas estratégicas de terras devolutas nacionais, espalhadas pelo interior do Sul do país, através de empresas especializadas, Teixeira Soares aventou a possibilidade de implantar uma “ferrovia colonizadora”, isto é, ela assentaria os trilhos e promoveria a colonização nos seus terrenos marginais, garantindo assim movimento de transporte para a estrada, ao mesmo tempo em que atendia os anseios governamentais de ocupação das terras incultas.
O levantamento preliminar topográfico indicou o possível roteiro: Itararé, Castro, Ponta Grossa, Rio Iguaçu, Rio Uruguai, Passo Fundo, Cruz Alta e Santa Maria, em perfil dos mais acidentados, numa extensão aproximada de 1.400 quilômetros. O traçado atravessaria territórios distintos. No Paraná, praticamente toda a região estava ocupada por fazendas de criação de gado e pequenas lavouras, com muitas pessoas instaladas na condição de sesmeiros ou de posseiros. Do Rio Iguaçu até passar o Rio Uruguai a maioria das terras eram nacionais devolutas, e, nas proximidades de Passo Fundo, voltava-se a encontrar sesmarias e posses.
A concessão fixava em 90 anos o prazo para a exploração da ferrovia e estabelecia a cessão gratuita de terrenos devolutos e nacionais, inclusive os compreendidos em sesmarias e posses, numa zona máxima de 30 quilômetros para cada lado das linhas, desde que a área total cedida e demarcada não viesse a exceder a média de uma faixa de nove quilômetros para cada lado da extensão total, a serem utilizados em colonização dentro de 50 anos. Concedia, ainda, direito de desapropriação e preferência para a lavra de minas na zona privilegiada. Era concedida à companhia a garantia de juros de 6% ao ano sobre o capital fixado e reconhecido pelo governo. Esta era a principal atração para os capitalistas europeus que, adquirindo ações da empresa, tinham garantida a rentabilidade mínima do investimento, independentemente dos seus resultados financeiros, no caso, aqui, sobre o montante de 37 mil contos de réis.
O Governo Provisório da República ratificou a concessão a 7 de abril de 1890, com duas ressalvas importantíssimas: reduziu a 15 quilômetros para cada lado da estrada o limite anterior de 30 km que determinava a zona máxima para a cessão de terras devolutas em cada margem, e deixou sem efeito as cláusulas com citações sobre a colonização destas terras. Ainda em 1890, a linha foi dividida em duas, sendo o trecho de Itararé a Cruz Alta transferido para a Companhia União Industrial do Brazil, ficando a Sud Ouest com o trecho de Cruz Alta a Santa Maria. Em seguida, Teixeira Soares fundou a Compagnie Chemins de Fer Sud Ouest Brésiliens, levantando o capital acionário inicial junto a investidores europeus, na Inglaterra e na França.
6.2.1 A Linha Sul no Contestado
Em 1888, os enviados do engenheiro Teixeira Soares, engenheiros, técnicos, topógrafos e exploradores, percorreram a vasta região interiorana das quatro províncias, buscando pontos referenciais para a elaboração de um primeiro traçado, quando, então, conheceram o Vale do Rio do Peixe. Toda a região, na qual fatalmente seriam assentados os trilhos, estava sob administração do Paraná, ainda que reclamada por Santa Catarina. A princípio, o traçado não foi estabelecido definitivamente, fixando-se apenas a diretriz Rio Iguaçu-Rio Uruguai. Partindo de Itararé, que era o ponto terminal da Estrada de Ferro Sorocabana e terminando no Rio Uruguai, dos 883 quilômetros até o Rio Grande do Sul, aproximadamente 380 pertenciam à travessia do Território Contestado.
Concluído o trecho de Ponta Grossa ao Rio Iguaçu, às vésperas da inauguração da Estação de Porto da União, entre o Governo Federal e a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, em 1904 foi acordado o prazo de três anos para a construção do primeiro trecho, não inferior a 100 quilômetros, de Porto da União em direção ao Sul, optando-se definitivamente pelo traçado do Rio do Peixe.
Como em junho de 1907 venceria o prazo de três anos dado para a conclusão do primeiro trecho, até o Taquaral Liso, passando pela Serra de São Miguel e Campos de São João, a EFSPRG também pediu mais prazo para a construção do trecho de Taquaral Liso ao Rio Uruguai, pois entendeu que teria que alongá-lo à vista das muitas curvas no Alto Rio do Peixe. Este pedido de prorrogação, que tratava também da construção de outros ramais, foi acolhido, lavrando-se novo contrato entre a União e a EFSPRG a 17 de dezembro de 1907. Dentro das novas normas estabelecidas, foi decidido que a estrada deveria rumar para São Roque e, dali em diante, margear toda a extensão do Rio do Peixe, das cabeceiras à foz, sempre pelo lado esquerdo, ou seja, em terras dos municípios de Curitibanos e de Campos Novos, na área sob jurisdição do Estado de Santa Catarina.
Passados seis meses desde o contrato de 1907, os trabalhos prosseguiam de modo irregular, sendo baldados os esforços da fiscalização federal para conseguir da companhia uma profícua orientação nos múltiplos setores da construção. Vendo que dificilmente poderia cumprir o prazo, a direção da EFSPRG, então, contratou o engenheiro Achilles Stengel como novo Superintendente da obra, o qual instalou seu escritório central na Fazenda São Roque, em outubro de 1908.
À recomendação do governo brasileiro, para a EFSPRG acelerar a obra, a primeira medida da Brazil Railway Company foi instalar rapidamente uma serraria da Southern Brazil Lumber and Colonization Company em São Roque, destinada ao fornecimento de tábuas de madeira de pinho para as estações e armazéns e, de dormentes de imbuia para o assentamento dos trilhos, já que, até aquele momento, todos os dormentes e a madeira vinham de fora. A pedido de Achilles Stengel, a companhia passou a contratar mão-de-obra em todo o Brasil, prometendo salários compensadores, tendo atraído, até dezembro de 1908, nada menos do que mais quatro mil trabalhadores, distribuídos em seções, ao longo da extensão da linha.
Como os trabalhadores eram contratados em todo o território brasileiro, sem nenhuma legislação trabalhista a regulamentar o sistema contratual, sem registro de trabalho que garantisse vínculo empregatício, a mão-de-obra formada voluntariamente reuniu milhares de pessoas estranhas umas às outras, de todas as raças, credos, profissões e classes sociais. Para a região acorreram, ao lado de pais de famílias, de pessoas boas e honestas, outro tanto de maltrapilhos, vagabundos, aventureiros, ex-presidiários, desertores de milícias e até foragidos da justiça.
O contrato venceria em 17 de dezembro de 1910. No final de 1909, mantido o ritmo acelerado dos trabalhos no Vale do Rio do Peixe, antevia-se que a obra seria concluída no prazo. Mesmo assim, não adiantaria inaugurar o trecho, pois, no Rio Grande do Sul, a Compagnie Auxiliaire estava demorando a aprontar a linha entre Passo Fundo e o Rio Uruguai. Suas maiores dificuldades estavam nas acentuadas elevações próximas ao Rio Uruguai (na seção de Erechim, Gaurama, Viadutos e Marcelino Ramos). Com isso, a União determinou àquela empresa o aceleramento das obras e a imediata construção da ponte sobre o Rio Uruguai, o que veio a ser feito pelo engenheiro Antonio Rocha Meireles Leite.
Neste ponto da História, entendemos ser oportuna nova abordagem sobre a violência na Região do Contestado, pois, foi a partir deste momento que ela mais se revelou no Vale do Rio do Peixe. O assalto ao trem , associado a outros ataques caboclos à ferrovia, provocou forte reação da EFSPRG. Obrigou-se Stengel a organizar um Regimento de Segurança da própria companhia (que até então não existia), um corpo especial formado por algumas dezenas de elementos de confiança, para manter a ordem entre os trabalhadores e para defender não apenas os interesses da EFSPRG, como também os operários em casos de brigas, furtos e assaltos, notadamente em épocas de pagamento. Junto ao Governo, ao criar este corpo de segurança, justificou-se a companhia na inexistência da polícia na região, na falta de defesa a assaltantes e na necessidade de proteger o patrimônio e defender os trabalhadores dos ataques dos índios botocudos.
O destacamento do Corpo de Segurança - do qual veio a fazer parte Miguel Lucena de Boaventura (futuro Monge José Maria) - de aproximadamente 80 homens, montados e fortemente armados, garantia ordem quando podia, inclusive empregando a força. As condições de trabalho eram mínimas. As manifestações de protestos dos trabalhadores eram reprimidas severamente, da mesma forma como as brigas entre os operários que, volta-e-meia, aconteciam, resultando em mortos e feridos. Clandestinamente, os corpos dos mortos eram soterrados embaixo dos trilhos ou jogados nas águas do Rio do Peixe.
A “viagem inaugural” do trecho de Porto União da Vitória, no Paraná, a Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul, aconteceu entre os dias 16 e 17 de dezembro de 1910, quando uma composição, conduzindo os engenheiros e diretores da EFSPRG, mais o pessoal de fiscalização federal, passou sobre o Rio Uruguai na manhã do dia 17, no mesmo em que vencia o prazo estabelecido em 1907 para a construção de toda a linha.
Ainda no último bimestre de 1910, centenas de trabalhadores começaram a ser dispensados. No início de 1911, somente permaneceram nos canteiros aqueles considerados necessários para os trabalhos finais de acabamentos ao longo de todo o trecho. Dos cerca de oito mil homens, foram escolhidos em torno de dois mil para trabalharem na construção do Ramal de São Francisco que, naquele tempo, estava em obras entre Rio Negro e Canoinhas. A companhia estava animada, pois havia obtido concessão para estender os trilhos até o Paraguai, o que também era um alento aos operários dispensados na Linha Sul. Por causa disso, calcula-se que cerca de dois mil permaneceram nas proximidades do Rio do Peixe, enquanto que os restantes regressaram aos seus pontos de origem.
6.2.2 O Ramal de São Francisco
Na concessão original dada a Teixeira Soares (Decreto nº 10.432, de 9 de novembro de 1889), previa-se, além da Linha Sul, como viria a ser chamada a ferrovia de Itararé a Santa Maria, a construção de um “ramal” que, partindo da linha tronco, deveria atingir a Guarapuava (PR) e, dali, prolongar-se-ia às margens do Rio Paraná, em Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai. Entretanto, o decreto seguinte (Decreto nº 305, de 7 de abril de 1890), que tornou efetiva a concessão original, dela excluiu o trecho Guarapuava-Foz do Iguaçu, entendendo não ser oportuna a sua construção, mas manteve a concessão para o lote entre a linha tronco e Guarapuava. Mais tarde, a continuação do ramal foi novamente autorizada, determinando-se à companhia organizada por Teixeira Soares que a linha partisse de Guarapuava, para alcançar a margem esquerda do Rio Paraná, em local fronteiriço ao Porto de Itapocurupocu, no Paraguai.
Em 1901, o Governo Federal alterou e consolidou todas as cláusulas dos decretos anteriores, relativos às concessões à Companhia, EFSPRG assegurando-lhe a concessão para a construção de um ramal entre a linha tronco e o porto de São Francisco.
Para o ramal entre Porto União da Vitória e São Francisco do Sul - trecho depois escolhido – o Governo deu gozo à Companhia de cessão gratuita de terras devolutas e nacionais, em uma zona máxima de 15 km para cada da linha, contanto que a área total não excedesse ao que corresponderia à média de nove quilômetros para cada lado da extensão total, devendo utilizar estes terrenos dentro de 50 anos. E, além de dar à Companhia, também, a preferência para a lavra de minas na zona privilegiada, dava direito de desapropriação de terrenos de domínio particular, prédios e benfeitorias, que fossem precisos para sediar o leito da ferrovia, as estações e os armazéns.
Em junho de 1902, o Governo Federal promoveu a união dos dois ramais projetados e concedidos à EFSPRG, criando a “Estrada de Ferro São Francisco-Foz do Iguassú”, que cortaria a Linha Sul em Porto União da Vitória. Somente nos últimos meses de 1904 a Companhia iniciou a construção na zona litorânea, ali se envolvendo numa série de problemas que, inesperadamente, a colocou em dificuldades, tanto que, ainda em 1907, a seção não estava concluída. Além da insalubridade da zona pantanosa e da travessia do Canal do Linguado, a empresa alegava problemas com desapropriações de terras.
As terras – cobertas por pinhais - das margens esquerdas dos rios Negro e Iguaçu já estavam mapeadas pelo Truste de Toronto, em conluio com certos grupos paranaenses, para sediar a Southern Brazil Lumber and Colonization Company, madeireira que pertencia ao mesmo Sindicato Farquhar. Passando por esta zona, a ferrovia facilitaria o escoamento da produção da serraria, com instalação em Três Barras (local tido como pertencente ao Paraná).
Em 1910, os trabalhos avançavam na seção de Rio Negro a Três Barras, onde o Sindicato Farquhar estava implantando a grande serraria da Lumber Company. No ano seguinte, enquanto era entregue ao tráfego o trecho entre as estações de São Francisco e Hansa, os trilhos alcançaram Três Barras, assim proporcionando condições à Lumber para o escoamento da produção de madeira de pinho serrado, com o que a serraria entrou em operação já no início de 1912. A empresa norte-americana, entretanto, do Ramal de São Francisco, passou a utilizar apenas o trecho até Rio Negro; dali, suas cargas subiam para serem exportadas via Porto D. Pedro II e Porto de Paranaguá, no Paraná, Estado para o qual recolhia os impostos e creditava as estatísticas de produção e de exportação.
Para os trabalhos de derrubada da mata, destocamentos, cortes e aterros, construção de pontilhões e boeiros, erguimento de pontes provisórias, a EFSPRG utilizou cerca de dois mil trabalhadores brasileiros, quase todos remanescente das obras na Linha Sul – entre Porto União da Vitória e o Rio Uruguai – inaugurada em dezembro de 1910, além de muitos imigrantes poloneses. Estava em construção o trecho de Canoinhas a Porto União da Vitória, atravessando os rios Paciência e Timbó, quando foi deflagrada a Guerra do Contestado. Sem garantias das forças militares para sua defesa com medo de sofrer ataques, a EFSPRG suspendeu as obras, deixando os trabalhadores à mercê do destino. E o destino da grande maioria desta mão-de-obra, voluntariamente ou aliciada, foi acorrer aos redutos, juntando-se aos rebeldes.
Somente depois de encerrada a intervenção militar federal na Região do Contestado, foi que a EFSPRG reiniciou as obras entre Canoinhas e Porto União. Mas, a União tornou sem efeito a concessão de terras devolutas na faixa de até 30 quilômetros ao longo da linha São Francisco-Porto União da Vitória, direito este que havia sido dado pelo Governo Federal à Companhia em 1901. Desta forma, as terras devolutas marginais aos trilhos do Ramal de São Francisco não foram tituladas para a EFSPRG para exploração e colonização, como aconteceu no trecho de Porto União da Vitória ao Rio Uruguai, margeando o Rio do Peixe.
No dia 17 de setembro de 1917, coincidentemente logo após a homologação pelo Congresso Nacional das leis dos congressos legislativos estaduais, de aprovação do “Acordo de Limites Paraná-Santa Catarina” (assinado em 1916), mesmo em concordata , a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande entregou ao tráfego o trecho de Canoinhas a Porto União da Vitória, assim dando por concluída - 13 anos depois - a ferrovia que ligou o Porto dos Ingleses, em São Francisco do Sul, a Porto União, com um total de 461 quilômetros.
6. 3 Southern Brazil Lumber & Colonization Company
Foi no ano de 1903 que a Companhia EFSPRG recebeu autorização do governo federal para explorar a madeira existente na chamada “zona privilegiada” de até 15 km. para lado da linha nas terras devolutas, além de naquelas que pudesse vir a adquirir junto aos terrenos marginais, para ser serrada em oficinas próprias. A abundância do pinheiro, da imbuia e outras espécies de madeira-da-lei na região, fez com que, em 1907, entrasse nos planos da empresa, recém incorporada pela Brazil Railway Company, a constituição de outra companhia, destinada à exploração madeireira e à colonização das terras.
Em 1909, o governo brasileiro autorizou o funcionamento no País da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, empresa organizada pelo Truste de Toronto em Miami (EUA) com capital inicial de apenas 100 mil dólares norte-americanos, destinada à exploração da riqueza vegetal e na colonização das terras dos vales dos rios do Peixe, Iguaçu, Negro, Timbó, Paciência e Canoinhas, sem levar em conta que a jurisdição administrativa sobre a área estava em litígio entre os Estados do Paraná e de Santa Catarina.
Em poucos meses, a Lumber Company veio a adquirir um total de 3.248 quilômetros quadrados de terras, ao Sul dos rios Negro e Iguaçu, escolhidas aquelas onde o pinheiro (araucária) despontava em grande escala, sendo 1.800 km² na região de Três Barras, 517 km² na região entre Porto União da Vitória e a Serra da Taquara Verde e 931 km² de áreas menores em diversos pontos próximos às duas glebas maiores, todas elas, segundo a empresa, localizadas no Paraná e não em Santa Catarina.
Segundo os levantamentos preliminares, existiriam nestas áreas adquiridas cerca de quatro milhões de pinheiros e dois milhões de imbuias, cedros e canelas, grande parte das árvores com um metro de diâmetro e até 30 metros de altura. Por tudo isso, a Lumber desembolsou apenas 4.872.000$000, quantia insignificante na época diante da grandiosidade do empreendimento e da riqueza vegetal que, mais tarde, revelaria a existência real de mais milhões de árvores, além daquelas antes citadas.
Nesta área existiam instaladas muitas fazendas de criação de gado e de culturas agrícolas diversas, carijos, barbaquás e engenhos de erva-mate, nas mãos de “coronéis” da Guarda Nacional, ricos fazendeiros e influentes políticos. Entre as propriedades, ainda havia muitos quilômetros quadrados de terras devolutas, ocupadas por posseiros que não tinham títulos plenos de posse e domínio. A Lumber escolheu as melhores porções de mata nativa, sendo que, além de adquirir terras cobertas, que por si só seriam suficientes para sua exploração, firmou diversos contratos com fazendeiros regionais, pelos quais se comprometia a serrar e tirar os pinheiros dos campos, para livrá-los das grimpas e favorecer as pastagens.
A primeira unidade industrial da Lumber foi instalada junto à Fazenda São Roque (na época no município paranaense de Porto União da Vitória, hoje na cidade catarinense de Calmon). Era uma serraria de porte médio, destinada a serrar imbuias para servir a EFSPRG com dormentes para a Linha Sul e pinheiros para as necessárias tábuas às estações ferroviárias e armazéns. Em Três Barras, logo depois, entre 1910 e 1912, com equipamentos trazidos diretamente da Europa, do Canadá e dos Estados Unidos, montou-se uma grande serraria, abrigada em diversos pavilhões, com várias serras-fitas, circulares de aço resistente, de até dois metros de diâmetro, que possibilitavam o desdobramento de qualquer tora, automatizadas, com capacidade para serrar, num período normal de dez horas de trabalho diário cerca de 300 metros cúbicos de madeira, obtendo um rendimento médio de 19 tábuas de 12 polegadas por 5,60 metros de comprimento, mais o aproveitamento, totalizando mil dúzias de madeiras de diversas medidas .
Como não houve problemas de dinheiro para a montagem deste colossal empreendimento em Três Barras, tudo foi possível se fazer na Lumber, a começar pelo corte dos pinheiros, a extração, o transporte até a serra, o desdobramento, o depósito e a exportação das madeiras serradas. Foi construída uma linha férrea particular que, partindo da serraria, em direção a Papanduva, chegou a ter 32 km de extensão por entre os pinhais. Servidas por duas locomotivas pequenas, tracionadas em seis rodas, as composições usavam os carros-plataformas com capacidade para 36 toneladas de carga, sendo que, em cada um, cabiam em média três toras. As composições que iam mato-a-dentro coletar as toras eram equipadas com possantes guinchos, movidos a vapor comprimido, armazenado em tanques especiais. Era utilizada também uma locomotiva a vapor, sem caldeira. Os guinchos lançavam cabos de aço até a 300 metros de distância, assim podendo recolher e carregar nos vagões as toras abatidas e depositadas numa área de 90 mil m² em cada parada. De volta à serraria, as composições eram descarregadas num pátio e, dali, as toras eram transportadas por esteiras mecânicas, até às serras-fitas, onde eram serradas em tábuas, classificadas e conduzidas ao depósito para aguardo de embarque. O transporte da madeira aos portos de Antonina e Paranaguá, no Paraná, e no Porto de São Francisco, em Santa Catarina, fazia-se pelos trens da EFSPRG e da própria Lumber. Uma bateria de caldeiras a vapor movia quatro geradores, que totalizavam 2.275 HP. de força, suficientes para as máquinas de serrar, para a fábrica de barricas, fábrica de gelo, fábrica de compensados e, a seguir, para a luz elétrica na sede.
Demarcadas as terras contestadas facilmente adquiridas e escrituradas no Paraná, a Lumber Company promoveu a expulsão dos caboclos que nelas moravam ou nelas exploravam a erva-mate. Como só se interessava pela madeira, arrendou seus ervais a fazendeiros das redondezas, simpáticos à causa paranaense na Questão de Limites. Os moradores, todos antigos posseiros, nunca dantes incomodados, em vão tentaram argüir usucapião. Relutando em sair, contra eles a empresa lançou seu corpo de guarda, que contava também com a participação de seguranças “cow-boys” vindos dos Estados Unidos.
Logo nos seus primeiros anos de funcionamento, a Lumber Company envolveu-se diretamente na Guerra do Contestado. Pelo volume da produção diária declarada, por informações e estimativas, calcula-se que nos seus 40 anos de funcionamento a madeireira deve ter cortado mais de 15 milhões de pinheiros na Região do Contestado, além de imbuias, cedros, canelas e perobas. A agressão não era apenas ao meio-ambiente natural, mas também ao elemento humano que habitava as matas: o caboclo. A devastação se dava sob o olhar sorrateiro dos caboclos, que tinham na araucária uma das maiores dádivas da natureza: o pinhão, seu fruto, alimento indispensável para os animais selvagens e para si mesmo.
A partir de junho de 1914, suas instalações em Calmon e em Três Barras passaram a ser guarnecidas por tropas do Regimento de Segurança do Paraná e do Exército Brasileiro e por piquetes civis. Guarda insuficiente, pois, a 5 de setembro de 1914, os caboclos atacaram a serraria de Calmon, destruindo-a totalmente.
A grande serraria da Companhia Lumber ardeu totalmente. Os grandes empilhamentos de pinho já beneficiado, abrangendo uma área enorme, em poucas horas de transformaram em cinzeiros. Os galpões dos machinismos, no dia imediato, eram esteios carbonizados em meio da vasta praça onde as engrenagens, contorcidas pelo calor do fogaréu, se destacam como esqueletos de engenhos (PEIXOTO, 1916, p. 232).
A partir de 1917, quando a empresa entrou em plena fase de produção em Três Barras e resolvida a questão de limites, a madeira começou a ter peso maior nas exportações catarinenses; o volume da produção veio dar maior contribuição após 1920, com a entrada em funcionamento das serrarias instaladas ao longo da ferrovia . É neste momento que o Brasil deixou de importar madeira, passando a abastecer-se na Floresta da Araucária. Aproveitando os planos catarinenses de incentivo à colonização da Região do Contestado, após o Distrito de Três Barras ser anexado a Santa Catarina, enquanto questionava com o governo catarinense a titularidade das terras dadas pelo Paraná ao Sindicato Farquhar por conta da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a Lumber Company ampliou seu raio de ação em busca de matéria-prima.
A Lumber Company era madeireira e colonizadora. Assim, nos primeiros anos da década de 1930, subdividia as áreas de onde já havia retirado o melhor da cobertura vegetal, para vender os lotes aos imigrantes que chegavam à região, bem como aos caboclos remanescentes da Guerra do Contestado. Por volta de 1935, a empresa iniciou a repartição das áreas onde já havia retirado madeira, em lotes coloniais de 10 a 20 alqueires cada, para vendê-los a imigrantes. Algumas terras, ainda cobertas por pinhais, também eram vendidas, mas, nestas, ela reservava a melhor parte das árvores.
Em 1940, o governo federal desapropriou todos os bens da Lumber e vinculou a empresa à Superintendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional, que foi desativando e a dilapidando gradualmente até 1948. Pela Lei nº 253, de 18 de fevereiro de 1948, do Presidente Eurico Gaspar Dutra, a Superintendência foi autorizada a vender, mediante concorrência pública, o que sobrou da Lumber Company, mais a Empresa de Armazéns Frigoríficos e a Companhia Indústrias de Papel – todas do antigo Sindicato Farquhar - abrindo um crédito especial de dois milhões de libras esterlinas (na época equivalente a 151 milhões de cruzeiros), para a liquidação do saldo das dívidas destas empresas com seus acionistas ingleses.
7 Disputas por Limites e Coronelismo no Contestado
Questões de Limites – Coronelismo
7. 1 Questão de Limites Paraná-Santa Catarina
7.1.1 A Administração Pública nas Terras Contestadas
Enquadrando a História do Contestado na cronologia da História de Santa Catarina até romper o Século XX, precisamos considerar que, no hoje Planalto Catarinense, dentro do campo político-administrativo, este Estado somente abrangia os municípios de Lages, Curitibanos e Campos Novos que, assim, constituem o primeiro cenário da presente abordagem.
Foi depois da ocupação dos Campos de Lages e da abertura da Estrada Real, pelos paulistas, no Século XVIII, que Santa Catarina apresentou oficialmente ao Gabinete Imperial suas reivindicações sobre o domínio administrativo do Planalto, a partir da Vila de Lages, a primeira datada de 1776 e a segunda de 1787, ainda enquanto vinculada à Ouvidoria do Rio Grande do Sul. Nos primeiros anos do Século XIX, a Província de São Paulo, cujas terras ao Sul eram administrativamente subordinadas a sua “5ª Comarca de Corityba”, ainda relutava junto ao Vice-Rei entregar Lages para os catarinenses pela sua localização estratégica na Estrada das Tropas, via de comunicação terrestre com a Colônia do Sacramento, no Extremo-Sul.
A incorporação da Freguesia de Lages a Santa Catarina, pelo Alvará do Gabinete Imperial de 9 de setembro de 1820 – dois anos antes da Independência do Brasil – somente aconteceu após a Província de São Paulo ter descoberto um novo caminho alternativo para os tropeiros, que desviava Lages, possibilitando a abertura da primeira Vereda das Missões, ligando Guarapuava à região missioneira gaúcha, com isso desinteressando-se pela Estrada Real e, conseqüentemente, por Lages.
A nova rota (pelo atual Oeste Catarinense) era melhor, em trajeto e em distância, do que a antiga Estrada Real; então, por este motivo econômico, que ficasse Lages para Santa Catarina. Aos paulistas-curitibanos, São Paulo garantia que os limites da agora catarinense Lages continuariam sendo os mesmos: pelos Campos da Estiva, pelo Rio Marombas, das suas nascentes à foz no Canoas e, por este abaixo até sua confluência com o Rio Pelotas e, daí para o Sudoeste, até o Rio Uruguai.
Não contavam os paulistas e nem os curitibanos com o “apetite” dos catarinenses, que, depois de “conquistar” Lages, entendendo serem seus limites, não pela Estiva-Marombas-Canoas-Pelotas, mas sim, os tais “espanhóis confinantes”, logo após a descoberta dos Campos de Palmas, passaram a reclamar ao Império, com insistência, toda a imensidão do território compreendido de Lages a Oeste.
Passados 24 anos da incorporação de Lages a Santa Catarina, a 21 de setembro de 1844, os presidentes das províncias de São Paulo e de Santa Catarina concordaram em submeter o litígio sobre suas fronteiras ao Poder Legislativo, obrigando-se, moralmente, a respeitar o statu quo ou o uti possidetis até a decisão final ser alcançada, ou seja, limitando-se cada qual a administrar as áreas por eles ocupadas até aquele momento.
Enquanto o Legislativo não decidia, os paulistas continuaram-se expandindo no rumo Sul, através da Comarca de Curitiba. Assim, a Província de São Paulo, que em 1819 havia criado a Freguesia de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava, trinta anos depois, pela Lei nº 14, de 21 de março de 1849, contrariando o acordo de 1844, elevou esta freguesia à condição de vila, nela incluindo a “Capella de Palmas”, tudo integrando a Comarca de Curitiba, mas o ato foi revogado pela Lei nº 21, de 22 de junho de 1850. Guarapuava foi restaurado como Município, ainda por São Paulo, pela Lei nº 12, de 17 de julho de 1852, com sede na Vila de Guarapuava. Ocorreu que, ao anexar a “Capella de Palmas” a Guarapuava, em 1849, a província de São Paulo não determinou seus limites; referia-se apenas aos “Campos de Palmas”, onde ali havia concedido sesmarias, promovendo a instalação, entre 1836 e 1840, de 37 fazendas, além de mais cinco, estas em Campo Erê, para ampliar seu uti possidetis no Território Contestado.
Em 1851, a Câmara Municipal de Lages decidiu-se pela criação de dois novos distritos, o de Campos Novos e o de Curitibanos, pois as áreas em que se localizavam eram consideradas integrantes do seu território e, assim, pertencentes a Santa Catarina. Foi desta forma que, respondendo aos paulistas, por iniciativa dos próprios lageanos, foi criado em 1852, no Município e na Freguesia de Lages, o Distrito de Curitibanos, dele fazendo parte os “quarteirões” de Curitibanos e de Campos Novos. Nesta oportunidade, Campos Novos não foi elevado à condição de distrito, pois ali era forte a postura contrária a Santa Catarina pelos fazendeiros, na grande maioria originária da Comarca de Curitiba e, por este motivo, Campos Novos foi considerado apenas um quarteirão, subordinado ao Distrito de Curitibanos. Também por causa disso, aumentaria a rivalidade entre os fazendeiros de Campos Novos e os de Curitibanos e Lages. O problema foi parcialmente sanado pela Resolução Provincial nº 377, de 16 de junho de 1854, quando, em seguida à emancipação do Paraná, o governo catarinense prestigiou a região de Campos Novos, elevando o quarteirão também à condição de Distrito de Lages e nele veio a criar a Freguesia de São João dos Campos Novos.
A Lei nº 704, de 29 de agosto de 1853, que criou a Província do Paraná a partir da Comarca de Curitiba, determinou que “A comarca de Curityba, na provincia de S. Paulo fica elevada á cathegoria de provincia com a denominação de Provincia do Paraná. A sua extensão e limites serão os mesmos da referida comarca”. Entretanto, tais limites, do Sul da Comarca de Curitiba, eram indefinidos e estavam sendo discutidos pelas províncias de São Paulo e de Santa Catarina, desde muito antes.
Em 1854, o sr. Joaquim Augusto do Livramento, representante da Província de Santa Catarina, apresentou um projeto na Câmara Temporária do Império, para que este desse por declaradas as divisas entre as duas províncias, conforme os rios Saí-Guaçu, Negro e Iguaçu: “As divisas entre a provincia de Santa Catharina e a do Paraná são os rios Sahy-Grande, o Rio Negro, e aquelle em que elle desagua”. Esta linha incluiria definitivamente dentro do território catarinense os Campos de Palmas, de Curitibanos e Campos Novos. Em resposta, o então Presidente da Província do Paraná, Zacarias de Goes e Vasconcellos, incluiu o assunto Limites com Santa Catarina em sua mensagem de abertura dos trabalhos da Assembléia Legislativa do Paraná, em 1854, impugnando a idéia de o povoado paranaense de Rio Negro ser dividido pelo meio e, de ser o curso deste rio, mais o prolongamento pelo Rio Iguaçu, a linha divisória com os catarinenses.
Foi visando a ampliação dos seus domínios, pela Resolução nº 16, de 16 de junho de 1854, que a Província de Santa Catarina criou, ainda dentro do Distrito de Curitibanos, no Município de Lages, a Freguesia de São João dos Campos Novos. Por seu turno, como nova província, pela Lei nº 2, de 26 de julho de 1854, o Paraná criou as freguesias de São José dos Pinhais e de Bathlem de Guarapuava, sem designar seus limites, assim deixando a questão em aberto, mas, a 4 e 5 de setembro de 1854, Vasconcellos sancionou as leis nºs 13 e 16, reconhecendo as transformações destas freguesias em vilas (municípios), organizando as posturas e, por não fixar seus limites, por esta indefinição insinuou a possibilidade de, nelas, inserir 1.600 léguas quadradas ao Sul dos rios Negro e Iguaçu, em Território Contestado. Tanto isso era verdade que, ratificando seus propósitos de assegurar os Campos de Palmas, pela Lei nº 22, já a 28 de fevereiro de 1855, criou a Freguesia de Palmas.
A 1º de março de 1857, o então presidente da Província de Santa Catarina, João José Coutinho, abriu a sessão da Assembléia Legislativa Catarinense, com um discurso em que abordou a discussão dos Limites da Provincia com a do Paraná, criticando asperamente os relatórios apresentados pela administração provincial paranaense em 1854 e 1855, e também, o Barão de Suruhy, o Barão de Antonina e o Vice-Presidente do Paraná, Baurepaire Rohan, todos com postura intransigente na Capital do Império sobre os limites interprovinciais, o que irritou profundamente as lideranças políticas paranaenses.
Com a abertura das Veredas das Missões, em 1864, a Província do Paraná criou uma Estação Fiscal na estrada de tropas que ligava Guarapuava e os Campos de Palmas com a região das Missões, no Rio Grande do Sul, instalando-a na passagem do Rio Chapecó, ao que Santa Catarina respondeu criando uma Estação Fiscal na mesma estrada, na passagem do Rio Uruguai. O Paraná denunciou que “não são de hoje os desejos manifestados por Santa Catharina, de absorver uma porção de território nosso, que orçará por 1.600 léguas quadradas” (Apud MAFRA, 1900, p. 509). As atitudes geraram protestos de ambas as partes, mas mantiveram-se ambos os postos provinciais de cobrança de impostos sobre animais até fevereiro de 1865.
A 22 de março de 1864, dez anos depois da criação da Freguesia de Campos Novos, pela Lei Provincial nº 535, Santa Catarina criou também a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Curitibanos, no Distrito de Curitibanos, Município de Lages. Com esta medida, os catarinenses mostravam aos paranaenses que não abriam mão da ampla jurisdição sobre Campos Novos e Curitibanos.
À vista das iniciativas de ambas as províncias sobre um mesmo território, em 16 de janeiro de 1865, sob orientação do Ministro da Agricultura, que era o deputado paranaense Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá, o Gabinete do Império editou o Decreto nº 3.378, nele constando que os limites entre as duas províncias “são provisoriamente fixados pelo Rio Sai-Guaçu, Serra do Mar, e Rio Marombas, desde sua vertente até o das Canoas e por êste até o Uruguai”, assim determinando que os Campos de Palmas, e parte de Curitibanos pertenceriam à Província do Paraná. A outra parte de Curitibanos, mais Campos Novos, ficaria com Santa Catarina. O ato foi imediatamente contestado por Santa Catarina que, em maio de 1865, apresentou novo projeto, mais uma vez fixando os limites pelo Rio Saí-Guaçu e, da Serra Geral para o interior, “pelo Rio Negro e o Iguaçu, ou Grande Curitiba, até a foz do Rio Santo Antonio”.
Com a decisão do Governo Imperial, de abrir a Estrada Dona Francisca, ligando São Francisco do Sul e a Colônia Dona Francisca (Joinville) à Vila de Rio Negro, para comunicar o litoral com os sertões do Oeste, no interesse dos planos nacionais de colonização, tomando a iniciativa, em 1868 o Paraná transferiu sua Estação Fiscal do Distrito dos Ambrósios, para o lugar Encruzilhada, distante 26 km ao Sul da margem esquerda do Rio Negro, fato que os catarinenses consideraram ato de invasão de território e de pretensão de conquista, exigindo seu recuo ao ponto original, pois ali já estava em curso o plano catarinense de extensão da Colônia Dona Francisca (Joinville), para a instalação de imigrantes alemães na Colônia São Bento.
Pela Lei nº 626, de 11 de junho de 1869, Santa Catarina transformou Curitibanos em Município, este instalado em 1873, envolvendo as freguesias de Nossa Senhora da Conceição de Curitibanos, São João dos Campos Novos e Nossa Senhora do Amparo do Campo de Palmas (nesta, insinuando seu domínio sobre os Campos de Palmas, nunca instalada), desligando-as de Lages, fixando a sede na Vila de Curitibanos, sob os protestos do Paraná.
Em 1870, a Província do Paraná elevou a Freguesia de Rio Negro à condição de Município, com sede na vila do mesmo nome, instalada em ambas as margens deste rio. Logo após a criação da Colônia São Bento (hoje São Bento do Sul), por Santa Catarina, em área que o Paraná dizia pertencer a Rio Negro, em 1874, os deputados de Santa Catarina na Câmara Federal apresentaram novo pedido de discussão do projeto original de 1865, sobre os limites, proposta que foi logo impugnada pelos deputados paranaenses. “Este adiamento ainda mais incitou o Paraná a pretender constituir posses á margem esquerda do Rio Negro; e a tal ponto que houve conflitos armados, seguindo-se porfiada discussão de limites entre os Presidentes das duas provincias...” (STF, Ação Originária nº 6, p. 73). Dali, o Paraná avançou rumo Sul, instalando colônias de imigrantes, chegando aos povoados dos atuais municípios de Papanduva, Itaiópolis, Monte Castelo e Santa Cecília, em área que, segundo Santa Catarina, pertencia a Curitibanos. E, no Oeste, em 1877, pela Lei Provincial nº 484, de 13 de abril, o Paraná elevou a Freguesia de Palmas à categoria de Município.
A 22 de novembro de 1878, por novo Aviso Imperial, foi restabelecido o Decreto nº 3.378 e, em seguida, a 14 de janeiro de 1879, o Gabinete do Império editou mais um Aviso, este endereçado ao Presidente de Santa Catarina, alterando parte deste decreto, ao trocar a divisa provisória, do Rio Marombas para o Rio do Peixe, expressando que:
[...] pondera a conveniencia de que, antes de dar-se principio ás medições na zona litigiosa entre essa e a Provincia do Paraná, se declare que a linha divisória, para os effeitos d’aquelle Aviso, é, não o rio ‘Marombas’, como resolvera o Decreto n. 3378 de 16 de janeiro de 1865, a que fez allusão aquelle acto do Governo, mas os rios ‘Peixe’ e ‘Goyo-En’, cujo territorio nunca foi contestado [...] (AVISO IMPERIAL).
Por este documento entendia-se, ainda que provisoriamente, como sendo paranaense toda a região ocidental ao Rio do Peixe, incluindo os Campos de Palmas e, como catarinense, a margem esquerda do Rio do Peixe, incluindo Campos Novos e Curitibanos.
Com esta medida do Império, pela lei nº 789, a 16 de outubro de 1884 o Paraná ampliou seu domínio sobre os Campos de Palmas, elevando o povoado de Bela Vista de Palmas à categoria de Freguesia, em área que alcançava o Campo Erê. Logo após a Proclamação da República, pela Lei nº 28, de 28 de junho de 1892, o Estado do Paraná também promoveu esta freguesia à condição de Município, desmembrado de Palmas.
Os problemas mais graves entre os dois Estados, no final do Império, aconteceram na área da Colônia de São Bento (hoje nos municípios de Campo Alegre, São Bento do Sul e Rio Negrinho), implantada em 1873 no prolongamento da Colônia Dona Francisca, por Santa Catarina, para receber imigrantes alemães. O núcleo encostava no Rio Preto, que era o limite do Município paranaense de Rio Negro (depois Mafra e atualmente Rio Negrinho), onde São Paulo havia iniciado a colonização com alemães ainda em 1829. Entendia o governo paranaense que a região estava sob sua jurisdição e, assim, em 1890, ao mesmo tempo em que elevou a Freguesia de Nossa Senhora da Vitória à condição de Município de Porto União da Vitória, pela Lei nº 4.554, de 27 de março deste ano, no local Encruzilhada (em São Bento do Sul), voltou a instalar um posto fiscal, guarnecido por destacamento militar, que se revelou ostensivo demais diante dos pacatos imigrantes, que passaram a viver em sobressalto. Em seguida, o Paraná colocou outras barreiras fiscais ao longo da parte alta da Estrada Dona Francisca e da Encruzilhada para cima, com isto prejudicando os ervateiros – até mesmo os paranaenses – que transportavam a erva-mate para os engenhos de Joinville.
Os protestos dos produtores imediatamente fizeram-se ouvir na capital catarinense e, dali, foram parar no Rio de Janeiro, pois os produtores, além do imposto a recolher para Santa Catarina, tinham que fazê-lo duplamente, agora também para o Tesouro do Paraná. O problema ganhou tamanha importância que, para evitar o emprego da força policial, os chefes dos governos provinciais da época reuniram-se em Curitiba e acertaram a cobrança do imposto sobre a erva-mate destinada a Paranaguá ou a São Francisco uma única vez, dividindo-se a receita entre as duas províncias, mas, a taxa de exportação, que em Santa Catarina era de 2%, foi elevada para 4%, igual à do Paraná. Neste encontro, os governantes também acordaram em discutir a questão sobre os limites interestaduais no Congresso Nacional.
A partir de 1893, por causa da deflagração da Revolução Federalista no Sul do Brasil, o quadro político-administrativo permaneceu inalterado na Região do Contestado, sem mais nenhuma iniciativa de conquista por parte dos dois Estados até encerrar o Século XIX. Assim, quando do início do período republicano, encontramos Santa Catarina e Paraná com fronteiras provisórias respeitadas apenas no Rio do Peixe, das suas nascentes, na Serra do Espigão, até a foz, no Rio Uruguai. O seu curso dividia, então, os municípios catarinenses de Curitibanos e Campos Novos, do município paranaense de Palmas. A área acima das serras Geral e do Espigão, até os rios Negro e Iguaçu, era objeto de mútua contestação, mas enquanto o Paraná promovia sua ocupação, através de Rio Negro e de Porto União da Vitória, Santa Catarina apenas reclamava da “invasão”.
7.1.2 A Disputa de Limites no Judiciário
Em 1891, quando a indefinição sobre as fronteiras entre Paraná e Santa Catarina continuava preocupando as autoridades dos dois Estados, na sessão de 27 de julho do Congresso Nacional, o Governador e Deputado Federal, Lauro Müller, e toda a bancada catarinense, apresentaram o Projeto-de-Lei nº 63 ao Congresso Nacional, propondo a fixação dos limites entre Paraná e Santa Catarina pelos rios Negro e Iguaçu. Remetido o projeto à Comissão de Legislação e Justiça, esta manifestou-se favoravelmente, “por unanimidade”, emitindo seu Parecer a 19 de setembro. Mas, já nas sessões de 22 e 23 de setembro, deputados paranaenses contestaram a informação de que o parecer havia sido unânime. A Comissão havia citado “unanimidade”, com o que deveria conter nove votos, mas, Bellarmino de Mendonça – membro desta comissão – não o havia assinado, por discordar do posicionamento de que o Congresso Nacional seria o fórum legal para decidir sobre a questão e, voto vencido na comissão, havia decidido esperar a sessão plenária para apresentar sua discordância.
Então, nas sessões de 25 e 28 de setembro de 1891, quando se debateu a questão do poder do Congresso Nacional para resolver sobre os limites interestaduais, Bellarmino de Mendonça, deputado pelo Paraná, defendeu a tese de que o Congresso Nacional só poderia resolver definitivamente a questão, depois que houvesse um acordo prévio entre as partes. A discussão acirrada foi adiada a requerimento da Comissão de Diplomacia e Tratados, até que fosse resolvida a questão com a República Argentina.
Em seqüência à questão internacional Brasil-Argentina, em 1895, ao invés de fazer voltar à discussão o projeto de 1891, a representação catarinense não lhe deu andamento. Lauro Müller havia sido defensor de que a questão deveria ser decidida pelo Congresso Nacional, mas, agora, os catarinenses, sob o governo de Hercílio Luz, davam indícios de que tinham mudado de idéia.
Diante do impasse, as bancadas do Paraná e de Santa Catarina no Congresso Nacional levantaram a possibilidade de se entregar a questão de limites estaduais a arbitramento, com a decisão sendo referendada pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, depois de solucionada a Questão de Limites Brasil-Argentina, em 1895, já a 22 de maio de 1896, os representantes federais dos dois Estados acordaram bases para a solução da questão de limites por arbitramento, devendo, nessse sentido, ser a sentença arbitral homologada pelo Supremo Tribunal Federal. A idéia do arbitramento surgiu dos advogados dos dois Estados, o Conselheiro Mafra (por Santa Catarina) e Ubaldino do Amaral (pelo Paraná), depois de consultarem informalmente o Supremo Tribunal Federal.
A iniciativa da proposição de um arbitramento federal acabou sendo aceita pelos executivos estaduais e aprovada pelas respectivas Assembléias Legislativas. De comum acordo, para árbitro, foi escolhido o Vice-Presidente da República, Dr. Manoel Victorino Pereira. Entretanto, logo depois de ser consultado, o STF declarou-se incompetente para intervir no ato político, esclarecendo que só poderia agir se fosse acionado por questão judicial. Diante da declaração do Poder Judiciário de incompetência para intervir na questão política sem que para isso fosse acionado para julgamento, para evitar que a disputa passasse enfim ao Poder Legislativo, como os paranaenses demonstraram querer, Lauro Muller, Hercílio Luz e Felippe Schmidt (Governador 1898-1902), articularam a estratégia catarinense de impetrar uma ação ordinária no STF, assim acionando a Justiça, como ela havia antes indiretamente orientado.
Em 1900, o governo catarinense, que já havia contratado o Conselheiro Manoel da Silva Mafra para assessorá-lo nas discussões e para defender seus interesses junto ao possível árbitro, diante da informação do STF de que só se pronunciaria se fosse acionado, resolveu impetrar uma ação direta no Supremo Tribunal Federal, aproveitando o trabalho do advogado, este que, em 1899, estava concluindo o documento Exposição Histórico-Jurídica por parte do Estado de Santa Catarina sobre a questão de limites com o Estado do Paraná, submettida, por accordo de ambos os Estados, á decisão arbitral. Os catarinenses surpreenderam o Paraná, protocolando no STF a petição originária, reclamando os limites pelos rios Negro e Iguaçu. Acolhida a ação, foi designado relator o Ministro Herminio Francisco do Espírito Santo. Os paranaenses, que ainda insistiam em negociar, sentiram-se afrontados com a iniciativa de Santa Catarina e tiveram que se defender no Tribunal. A partir daí, o “problema” político-administrativo virou “questão”, tanto política e administrativa, como judicial, social, tributária e militar.
Os políticos catarinenses – Lauro Muller, Hercílio Luz, Vidal Ramos Júnior e Felippe Schmidt – assessorados por membros de seus gabinetes e outros familiares, que nos anos de virada-de-século já enraizavam as oligarquias catarinenses, haviam recorrido a um caminho perigoso. Mesmo arriscando-se a “comprar briga” com o Paraná (o que de fato veio a acontecer), tinham plena consciência de que, se a questão dos limites fosse levada ao Congresso Nacional, ali suas chances seriam mínimas, pois havia uma “brecha” na Constituição Federal de 1891 que favorecia as reivindicações paranaenses e, estes, tinham a seu favor, ainda, o mais importante: quem ocupava majoritariamente o Território Contestado, além dos rios Canoinhas e do Peixe, eram famílias com berço no Paraná (antes em São Paulo) e, quem administrava a maior parte da área era o Governo do Paraná.
À petição inicial, em janeiro de 1902, o Conselheiro Mafra adicionou sua Exposição Histórico-Jurídica. O Paraná defendeu-se, através de um manuscrito de 24 páginas, assinado pelo Conselheiro Joaquim da Costa Barradas, que, em abril deste mesmo ano, adicionou à resposta paranaense ao Supremo Tribunal Federal o Memorial por parte do Paraná - Acção Originaria de Reivindicação sobre Limites territoriaes entre os Estados do Paraná e Santa Catharina - 1902.
Contestando todas as alegações catarinenses, Barradas classificou a “Ação Ordinaria Originaria” como “Ação Originária Reivindicatória”, apelou para o princípio do uti possidetis paranaense no Território Contestado e insistiu na validade e plena vigência do Decreto nº 3.378, de 1865, assim concluindo:
Enquanto o Paraná apresenta estes e outros títulos, quaes são os que exhibe Santa Catharina para disputar-lhe a pósse do território em litígio? Em que se fundamenta este ultimo Estado para attribuir a usurpações o exercicio longo e pacifico da jurisdicção de S.Paulo e do Paraná sobre esse mesmo território? [...]. Qualquer que seja o ponto de vista porque se encare esta pretenção de Santa Catharina, ella se patenteia ao mesmo tempo injustificavel e cruel. O Estado do Paraná, pois, seguro na força do seu direito insophismavel e sempre reconhecido, e certo da rectidão dos mais eminentes Juizes da Republica, espera que lhe seja feita justiça, julgando-se improcedente a presente acção (BARRADAS, 1902).
A 6 de julho de 1904, por seis votos contra quatro, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa ao Estado de Santa Catarina, na Ação Originaria Ordinaria nº 6, nos termos da petição inicial, decisão da qual expediu-se o “Accordão”:
Se o direito favorece as pretenções do Estado de Santa Catharina, que as baseia em titulos historicos e juridicos, tem ainda elle por si o DIREITO de possuir limites naturaes, como sejam, os rios Negro e Ygoassú ao norte, o Urugoay ao sul, ao oriente o oceano e ao ponte as fronteiras argentinas (STF, Acordão, 1904).
A 19 de agosto de 1904, o Paraná apôs embargos a esta decisão da Suprema Corte Nacional, ao que, a 2 de setembro, Santa Catarina imediatamente protestou e fez impugnação. Sendo relator o Ministro André Cavalcante, a 24 de dezembro de 1909, o Supremo Tribunal Federal rejeitou os embargos que haviam sido protocolados pelo Estado do Paraná, emitindo novo Acordão (o segundo favorável a Santa Catarina), pelo qual estabeleceu:
Assim, os limites de Santa Catharina do lado Norte ficaram sendo o Sahi-Guassú, o Rio Negro e o Iguassú. E como o territorio do Têrmo de Lages, para o lado do Oeste, abrangia todo o vasto sertão que fora parte da Comarca de Curytiba, e o dito sertão não tem ao Norte outros limites que não o Iguassú, força é reconhecer que o Iguassú desde a Foz do Rio Negro às extremas do territorio com a Republica Argentina, ficou sendo o limite de Santa Catharina com o Estado do Paraná (STF, Acordão, 1909).
O Estado do Paraná mais uma vez interpôs embargos declaratórios à sentença do Supremo Tribunal Federal, que foram prontamente contestados por Santa Catarina, resultando na terceira sentença favorável aos catarinenses. O STF acolheu a decisão do relator André Cavalcanti, em sessão de 25 de julho de 1910, ratificando que os limites de Santa Catharina, do lado Norte, eram o Sahy Guassú, o Rio Negro e o Iguassú e que este, desde a foz do Rio Negro ás extremas do territorio brasileiro com a Republica Argentina, ficava sendo o limite de Santa Catharina com o Estado do Paraná; alem disso, por não se poder, em virtude de semelhante recurso, alterar o julgamento que foi proferido conforme o direito e as provas dos autos (STF, Acordão, 1910).
A decisão do Supremo Tribunal Federal de 1910, entretanto, permaneceu inócua, pois o Estado do Paraná resistiu e, sempre recorrendo ao Judiciário, ao mesmo tempo em que ameaçava ir às armas, não permitiu sua aplicação. De 1910 a 1913, pelas páginas dos jornais e tribunas dos parlamentos, aconteceriam enfrentamentos entre as duas partes, elevando a tensão social nos dois Estados, até que a questão chegou a um ponto crítico, também motivando a deflagração da Guerra do Contestado. Somente após a guerra haveria um “acordo” entre os dois Estados, que pôs fim ao litígio, como veremos adiante.
7. 2 A marca do coronelismo no Contestado
Ao proclamar a Independência do Brasil, D. Pedro I ficou à mercê de um corpo de Exército Brasileiro, cuja oficialidade era constituída na maioria por portugueses e estrangeiros. A manutenção da lei e da ordem interna era, na época, atribuição de milícias, guardas municipais e ordenanças. Com suas atribuições e responsabilidades determinadas pela Constituição Imperial de 1824, nem sempre o Exército demonstrava a desejada unidade, vivendo constantes momentos de crises internas, com insubordinações nas guarnições, devido, principalmente, à numerosa infiltração estrangeira nos quartéis da capital do Império e nas capitais das províncias.
Na vigência da Regência Permanente do Império, o Ministro da Justiça, padre Diogo Antonio Feijó, em julho de 1831, ainda tentava acalmar os ânimos dos militares, divididos entre as três correntes políticas da época: a exaltada, que desejava a República; a restauradora, que queria a volta de Dom Pedro I; e a moderada, que apoiava a Regência. Diante de uma situação considerada grave, faziam-se necessárias medidas urgentes para a restauração da unidade no Exército.
A 18 de agosto de 1831, o então Regente, Diogo Feijó, assinou a lei de criação da Guarda Nacional do Império, ao mesmo tempo em que extinguiu as milícias, ordenanças e guardas municipais: "A Guarda Nacional é instituída para defender a Constituição, a liberdade, a independência e integridade do Império; para manter a obediência às leis; conservar ou restabelecer a ordem e a tranqüilidade pública; e para auxiliar o Exército de Linha na defesa das praças, fronteiras e costas".
É de lembrar as origens liberais da instituição, evidentemente imitada aos franceses. Sonhava-se que os cidadãos em pessoa fossem responsáveis pela ordem pública interna e auxiliares da defesa externa, sem caráter profissional.
Em 1831, logo depois da abdicação de dom Pedro I, o prestígio do exército regular se achava abalado, seja porque muitos de seus oficiais eram portugueses, seja porque haviam sido afeiçoados ao monarca deposto. Recrutando seus homens em agrupamentos sociais modestos, inclusive entre negros livres, e escolhendo seus comandantes por eleição, a Guarda Nacional teve, em seus primeiros anos de vida, um caráter acentuadamente popular (FRANCO, in: Correio do Povo, 18 ago. 1981).
A corporação, que passou a ser organizada em todo o território nacional, era composta por Batalhões, cada qual formado por seis a oito Companhias e, estas, constituídas por 100 a 500 homens. Seus oficiais tinham as mesmas patentes dos oficiais do Exército, exceto a de general. Para os escalões dos batalhões eram nomeados pelo governo imperial: o tenente-coronel comandante (chamado simplesmente de "coronel"), um major, tenentes, alferes e sargentos; para as companhias: um capitão comandante, tenente, alferes, sargentos e cabos. Esta corporação civil era uma milícia paramilitar, à paisana, à qual poderiam se inscrever como "guardas nacionais" todos os homens válidos e maiores de idade do Brasil.
Como para o coronelato eram nomeados os grandes senhores de engenho (no Leste e Nordeste do Brasil) e os fazendeiros mais poderosos (caso do Sudeste e do Sul), os oficiais eram os próprios capatazes das suas fazendas e pessoas de importância ou aliados políticos e, os soldados, eram escolhidos entre os agregados, peões e capangas dos fazendeiros, mais pessoas simples que moravam em vilas e pequenas fazendas, de confiança dos coronéis e capitães (fazendeiros de menor importância, comandantes de companhias e de esquadrões). A todos, era proporcionado acesso a armas e munições, e treinamento militar.
Em agosto de 1831, quando o Padre Diogo Antônio Feijó extinguiu os Corpos de Milícias e criou a Guarda Nacional, não imaginava que a nova corporação logo se tornaria uma grande predileção da classe rural de fazendeiros, os quais muitas vezes se envolviam em amargas rivalidades na disputa por títulos e posições, tendo em vista os privilégios e imunidades a eles inerentes. Em Coronelismo, Enxada e Voto, Victor Nunes Leal explica que
[...] durante quase um século, em cada um dos nossos municípios existia um regimento da Guarda Nacional. O posto de “coronel” era geralmente concedido ao chefe político da comuna. Ele e os outros oficiais, uma vez inteirados das respectivas nomeações, tratavam logo de obter as patentes, pagando-lhes os emolumentos e averbações para que pudessem elas produzir logo os seus efeitos legais. Um destes era da mais alta importância, pois os oficiais da Guarda Nacional não podiam, quando presos e sujeitos a processo criminal, ou quando condenados, ser recolhidos aos cárceres comuns, ficando apenas sob custódia na chamada “sala livre” da cadeia pública da localidade a que pertenciam. Todo oficial possuía o uniforme com as insígnias do posto para que fora designado. Com esse traje militar, marchavam eles para as ações bélicas, assim também tomando parte nas solenidades religiosas e profanas da sua terra natal. Eram, de ordinário, os mais opulentos fazendeiros ou os comerciantes e industriais mais abastados, os que exerciam, em cada município, o comando-em-chefe da Guarda nacional, ao mesmo tempo em que a direção política, quase ditatorial senão patriarcal, que lhes confiava o governo provincial (LEAL, 1948, p. 9-10).
Surgiu assim no país o "coronelismo", ampliando o já então existente poder político dos fazendeiros, senhores de latifúndios, que passaram a exercer também o poder paramilitar e militar nas províncias brasileiras.
Por ser realista. essa política do Imperador tomou pé e raízes na realidade brasileira. Os coronéis, contudo, mergulhados em sua política regional e no torvelinho das paixões humanas que fatalmente todo poder local traz, mais de uma vez desviaram a Guarda Nacional de seus objetivos nacionais assim como dos interesses da Pátria e do povo brasileiro, para os objetivos do Coronelismo... (Tobias, 1987, p. 145).
Logo após a criação da Guarda Nacional, em 1831, a Regência confiou ao então Major Luís Alves de Lima e Silva - futuro Barão, Conde e Duque de Caxias - a tarefa de organizar um forte “Batalhão de Oficiais”entre os soldados imperiais permanentes, que fossem cegamente leais à Regência, o que fez com sucesso, pois nos anos seguintes veio a reprimir as principais revoltas provinciais, lideradas por forças extremistas em diversas partes do Império, tendo, inclusive, combatido unidades da Guarda Nacional, quando estas se rebelaram ou aderiram a rebeldes, contra o poder central.
Quando de uma destas revoltas, a “Balaiada” (1838-1841) no Maranhão, Caxias veio a ser o primeiro soldado-estadista do Brasil, pois pela primeira vez, ali, viu-se um militar assumindo o alto cargo político de Presidente Provincial. Em 1841, ele foi promovido a Brigadeiro do Exército Imperial e, pouco depois, assumia a Província do Rio Grande do Sul, onde seu nome foi sufragado como Senador vitalício, rendendo-lhe ainda o titulo de Conde e o posto de Marechal-de-Campo.
A necessidade de se criar esquadrões da Guarda Nacional para servir ao Governo Imperial, na então ainda despovoada Região do Contestado, surgiu já em 1838, quando as forças da Revolução Farroupilha, deflagrada em 1835 no Rio Grande do Sul, chegaram a Lages, invadindo Santa Catarina para instaurar a República Catarinense.
O Imperador D. Pedro II, pela Lei nº 602, de 19 de setembro de 1850, deu nova organização à Guarda Nacional, possibilitando sua expansão através dos presidentes das províncias e - isso muito nos interessa - nas províncias limítrofes com estados estrangeiros, como as do Sul do Brasil. Assim, nos anos seguintes, criaram-se mais batalhões no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, com companhias e esquadrões de Cavalaria e Infantaria.
A "Tríplice Aliança", firmada por Brasil, Argentina e Uruguai, exigiu a incorporação das guardas nacionais provinciais aos corpos de "Voluntários da Pátria" - para atuarem na Guerra do Paraguai - a partir de 1865. Fazendeiros catarinenses e paranaenses, ao lado de caudilhos e estancieiros gaúchos, conduziram milhares de homens ao campo de batalha, proporcionando-lhes não mais somente o treinamento para a guerra, mas a participação sangrenta em ferozes combates corpo-a-corpo. Entre os alistados, também estavam centenas de camponeses e sertanejos recrutados "na marra" nas vilas e fazendas da Região do Contestado.
Na Guerra do Paraguai, principalmente no início, quando o Império somente dispunha de 12.000 homens, inexorável a constatação de que a Guarda Nacional foi muito significativa para a composição das forças militares acionadas pelo Brasil, contra a geopolítica armada do Paraguai. Não só em número mas em qualidade também. Dos batalhões da Guarda Nacional muito de heroísmo e muito de sangue na convulsão continental daquela guerra (MARTORANO, in: O Estado, sd).
Encerrado o genocídio praticado pelos brasileiros no Paraguai, os "voluntários" sobreviventes das guardas nacionais regressaram às suas casas, retomando as atividades cotidianas nas fazendas do Contestado. Daí até a Guerra do Contestado (1913-1916), os esquadrões do Paraná e de Santa Catarina eram esporadicamente chamados a intervir em entreveros locais atinentes à "Questão de Limites Paraná-Santa Catarina". Neste período, o Coronelismo acentuou-se na Região do Contestado, onde inúmeras já eram as fazendas, tanto as maiores, oriundas das antigas sesmarias, como as menores, que surgiram após a Lei das Terras, de 1850. Para Sérgio da Costa Franco, a Guarda Nacional
[...] desfigurou-se mais tarde, aristocratizou-se. Passou a servir aos interesses eleitorais das facções dominantes, prestando-se a medidas de compressão contra oposicionistas. Não tardou que recebesse a hostilidade dos políticos liberais. E, ainda do Império, depois da reforma de 1873, tornou-se quase puramente honorífica - um vistoso corpo de oficiais sem soldados. Conservou-se apenas como um fator de prestígio político, ser oficial da Guarda Nacional. Mas, limitadas a uma revista anual, as unidades da G.N. haviam perdido até mesmo a função eleitoreira. A República, finalmente, completou o estiolamento da organização, mantendo apenas os coronelatos de mentira que glorificavam alguns chefes municipais (FRANCO, in: Correio do Povo, 18 ago. 1981).
Com a Proclamação da República, em 1889, a Guarda Nacional foi mantida e melhor organizada, passando para os Estados as indicações de nomes para o oficialato, nomeações que se davam através de "cartas-patentes" da presidência. Durante a litigiosa questão de limites, os governos estaduais do Paraná e de Santa Catarina procuravam nomear e promover fazendeiros que se manifestassem mais simpáticos e favoráveis, respectivamente, às suas causas, cada qual, assim, atraindo para si o apoio e a adesão das pessoas mais influentes do Território Contestado. A Guarda Nacional era forte instrumento político, a par de força militar.
Todo o poder era concentrado nos poderosos fazendeiros-coronéis, que administravam suas terras e influenciavam a política administrativa e até decidiam eleições nas vilas próximas. O sistema ditatorial resultou do próprio ambiente e das condições daquele tempo: falta de autoridade legal, isolamento dos centros urbanos civilizados e ausência de policiamento. O dono-da-fazenda, automaticamente, era juiz, delegado, chefe e legislador, recebendo respeito de todos os subordinados.
A Guarda Nacional sobreviveu ao advento da República. Patentes de oficial obtidas pelos pretendentes a postos na quase simbólica hierarquia da tropa armada. No fastígio do coronelismo os detentores do poder político, latifundiários quase sempre ou grandes comerciantes, na emulação procuravam ostentar seus postos - desde tenentes até coronéis. Cabia-lhes, individualmente, aliciar, instruir, manter e comandar suas próprias forças. Era a réplica ao caudilhismo. Canalização legal da convergência da vontade de dominação para os propósitos do próprio governo.
Poderosos Senhores, valendo-se da submissão de numerosos familiares, quando não de muitos sobre quem exerciam proteção, ligados a suas fazendas. Mas uma coisa os distinguia. A total disciplina e imediata resposta a qualquer apelo dos Governos. Força sempre legalista. Anteparo aos “bochinchos” dos caudilhos, que de quando em quando insurrectos, nas estrepolias de seus cavaleiros, testavam a estabilidade dos Governos republicanos. Mas muito pouco se fazia além do papel. Mais títulos para os oficiais do que ideal para seus soldados. [...] Dizem uns que ao temor da ressurreição de pruridos monarquistas se deve sua extinção (MARTORANO, in: O Estado, sd).
No Contestado, todo o poder era concentrado nos poderosos fazendeiros-coronéis que administravam suas terras e influenciavam a política administrativa e até decidiam eleições nas vilas próximas. A par do Coronelismo, via-se aqui também o “compadresco”, forte ligação afetiva que ligava o pessoal dependente com os donos das fazendas e com os chefes políticos. Quantos mais afilhados e compadres, que caíam nas boas graças e se viam promovidos socialmente, maior era o poder do Coronel. O beija-mão e o pedido de bênção ao padrinho eram ensinados desde cedo às crianças, para saber respeitar a classe dominante. O poder político na Região do Contestado, amarrado às oligarquias estaduais, era disputado entre os coronéis, que se dividiam, pelas raízes históricas, entre farroupilhas e legalistas, entre pica-paus e maragatos, entre defensores do Império e da República, entre catarinenses e paranaenses e, pela natureza política, entre os partidos políticos que disputavam o poder e distribuíam as benesses, antes entre liberais e conservadores, em seguida entre os federalistas e republicanos, e entre republicanos e liberais. A permanente competição entre os chefes alcançava seus subordinados que, algumas vezes, entravam em luta corporal e armada entre si, durante festas religiosas e rodeios.
O fenômeno coronelista não é novo. Novo será sua coloração estadualista e sua emnacipação no agrarismo republicano, mais liberto das peias e das dependências econômicas do patrimonialismo central do Império. O coronel recebe seu nome da Guarda Nacional, cujo chefe, do regimento municipal, investia-se daquele posto, devendo a nomeação recair sobre pessoa socialmente qualificada, em regra detentora de riqueza, à medida em que se acentua o teor de classe na sociedade. Ao lado do coronel legalmente sagrado prosperou o “coronel tradicional”, também chefe político e também senhor dos meios capazes de sustentar o estilo de vida de sua posição (Faoro, 1976, p. 621).
Em Catarinensismos, Theobaldo Costa Jamundá não perdoa os coronéis da nossa região, chamando-os de "coronéis-da-roça":
Reduto onde o coronelismo-da-roça proporcionou para o noticiário nacional aspectos bárbaros na fertilidade da miséria. Ali o mandonismo dos coronéis-da-roça com a ação paralela dos bandidos - estes nunca faltam onde existe Terra de Ninguém - instituíram a desordem como ordem. Assim sem censura de qualquer espécie, deu as condições defertilidade para a instalação e domínio da afirmação na violência: aqui, quem manda sou eu. Por certo, o artigo único do: aqui mando e posso; a lei sou seu (JAMUNDÁ, 1974, p. 120-121).
Entramos no século XX com a Guarda Nacional organizada nos municípios paranaenses de Rio Negro, União da Vitória, Palmas e Guarapuava e, nos catarinenses, em Lages, Curitibanos, Campos Novos e Canoinhas (os únicos municípios então existentes no Território Contestado). Seus batalhões, companhias e esquadrões eram confiados a diversos coronéis (da roça?) e capitães, sendo que entre os fazendeiros mais citados nos episódios da Guerra do Contestado, encontramos: Manoel Fabrício Vieira, Miguel Fabrício das Neves, Nicolao Bley Neto, Arthur de Paula e Souza, Amazonas Marcondes, Juca Pimpão, Pedro de Sá Ribas e Domingos Soares (pelo Paraná), mais Henrique de Almeida, Francisco Ferreira Albuquerque, Maximino de Moraes, Marcos Gonçalves de Farias, Vidal Ramos e Henrique Rupp (por Santa Catarina).
Em pouco tempo, o tratamento de "coronel" começou a ser dado a qualquer chefe político ou a qualquer fazendeiro rico, fossem ou não vinculados às guardas nacionais, como diz Victor Nunes Leal: "O aspecto que logo salta aos olhos é o da liderança, com a figura do 'coronel' ocupando o lugar de maior destaque. Os chefes políticos municipais nem sempre são autênticos coronéis" (LEAL, 1975:, p. 21). Aqui, os latifundiários fazendeiros-coronéis e chefes políticos locais exerceram o "mandonismo" por imposição natural do próprio sistema social e cultural:
O coronel-da-roça sempre foi um coronel-da-roça, nem mau nem bom; nem justo nem injusto; visceralmente, político pela própria identificação com as origens. Não foi um dominador do meio e sim um acomodado no complexo do habitat. Surgiu com a autoridade fruto-da-terra, a ela permaneceu moldado como uma luva a uma mão para exercitar, perfeitamente, o coronelato (JAMUNDÁ, 1974, p. 122).
Não raras vezes os esquadrões da Guarda Nacional no Contestado eram formados exclusivamente pelos capatazes, camaradas, peões e agregados das propriedades dos respectivos comandantes. Piquetes civis eram mantidos em permanente forma, prontos para intervir. Assim, a faca, a pistola, a espada, a lança, o facão, a espingarda ou o mosquetão, estavam sempre à mão, mesmo quando o pessoal se dedicava às tarefas peculiares e cotidianas nas fazendas.
A Guarda Nacional foi extinta pelo presidente da República Artur da Silva Bernardes, através do Decreto nº 15.492, de 22 de maio de 1922, mas nenhum decreto conseguiu extingüir de imediato a força do Coronelismo no Contestado. Em eventos bélicos seguintes no Sul, em 1923 (nova revolta rio-grandense), em 1924 (Coluna Prestes), em 1926 (Invasão de Leonel Rocha), em 1930 (Revolução Getulista) e em 1932 (Revolta Constitucionalista), quando a Força Pública de Santa Catarina precisou organizar-se, comissionou os civis, antigos comandantes de companhias e esquadrões da Guarda Nacional, para ocuparem os postos de oficiais. Hoje, muitas cidades da região têm - e mantêm - ruas, praças e avenidas, denominadas de "Coronel fulano de tal", em homenagem ao coronelismo regional, assim perpetuando na História a falida estrutura do poder oligárquico do Século XX.
Destacando que a oligarquia Ramos era originária de Lages, em sua dissertação de Mestrado em Direito à UFSC, intitulada Poder Político e Mudança Social, Silveira Lenzi confirma que “a política no município sempre foi comandada pela família Ramos, formando clãs de parentela que desde 1850 começou (sic) a influir na vida política do município, da região e mesmo do Estado”. (1977, p. 91). Em Lages, ainda segundo este autor,
[...] até perto da década de 1950, predominava a grande propriedade rural, as fazendas, que se constituíram na única forma de exploração econômica... Nos seus dominios, o senhor rural – o oligarca, o mandonista, o coronel, o chefe político – exercia poder absoluto sobre as manifestações dos agregados e peões... sua influência ultrapassava as taipas, porteiras e invernadas, cristalizando-se nas vilas, distritos, ou na cidade, dominando o mecanismo eleitoral e o administrativo... A grande família era o pólo deste tipo de poder local (LENZI, 1977, p. 31-32. Apud: CARREIRÃO, 1990, p. 37).
Tratando do “voto-de-cabresto” ou do “voto-mercadoria”, em Coronel, Coronéis, Marcos Vinicios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque, passam-nos o retrato brasileiro sobre a atuação dos coronéis nas eleições, que se reproduz na História do Contestado:
Divide o coronel êle mesmo, soberanamente, a votação. Divide-a entre os seus candidatos a vereador, deputado, entregando pessoalmente a “chapa” ao eleitor, que quase sempre só utiliza a que lhe foi entregue pelo coronel, e que conserva com cuidado. Premia, na divisão, aquêles candidatos filhos ou parentes, ou os de maior estima, com as maiores e mais “seguras” votações; marca, com vários artifícios – chapas duplas ou datilografadas, combinações mais improváveis de candidatos, etc. – o voto daquele eleitor de quem duvida, ou que hesita em contar como certo, quase sempre revelando ser o “seu voto de chapa marcada”. Para conseguir seus objetivos político-eleitorais, é capaz das maiores fraudes, muitas vêzes acolhidas ou acobertadas por juízes e promotores submissos. Fraudes na inscrição de eleitores analfabetos (na ânsia de alargar a base eleitoral, o coronel faz aqui coincidir os seus interêsses com os da democratização do voto, pelo menos no aspecto quantitativo). Fraudes de coação ao eleitorado, amedrontado por capangas, pelo uso da polícia que manipula como fôrça de coação e de coerção eleitoral. Mais tarde, quando vê formar-se oposição ao seu prestígio, empiqueta as estradas nos dias de eleição, dando passagem apenas a seus eleitores; constrói “currais eleitorais” de onde os votantes saem suficientemente “municiados” com chapas e são escoltados para votar; anula urnas cuja votação se lhe afigure contrária; toma e destrói documentos eleitorais. Utiliza-se, enfim, das mais tremendas formas de fraude, usando todos os meios que pode mobilizar em favor de seus objetivos e de sua paixão política (Vilaça & Albuquerque, 1978, p. 38-39).
A Região do Contestado, agora incluindo a parte sacada do Território Contestado, do Paraná, anexada a Santa Catarina, permaneceria ainda por muitos anos atrelada ao coronelismo, pois muito devagar foi a transformação da base econômica, de exclusivamente agro-pastoril, para agro-industrial. Nosso colega de Programa de Mestrado na UnC, João Rubens Sinderski, de Mafra, na sua dissertação Repercussão do Coronelismo na Educação, na Nova República (2000), muito bem entendeu que
[...] o coronelismo irá fundamentar sua força política através de uma representatividade adquirida de uma base eleitoral. É a base eleitoral que determina o domínio territorial, sendo extenso ou não, proporcionando ao coronel o controle de um determinado número de eleitores. Deste modo, o coronel passa a ser o protetor de um “feudo”, que seria um município ou até uma região maior, e também protetor dos eleitores presentes neste “feudo”. Quanto mais distante a região dos grandes centros e da capital, maior a dependência da proteção do coronel.
O coronel acaba se destacando como figura de maior relevância no espaço social do município ou da região. Acaba sendo respeitado pela sua liderança, pela capacidade de comando, qualidades que o habilitam à chefia. [...]. Para exercer o domínio, há necessidade de haver uma estrutura de controle, já que quanto maior o número de eleitores controlados, maior o poder político adquirido. Trata-se de uma estrutura informal intimamente ligada através de indivíduos subordinados ao controle personalista de um líder social carismático. [...].
Havendo controle do eleitorado, a autoridade concentrava-se nas mãos dos coronéis. Assim, para um “bom desempenho” do coronel junto ao eleitorado, é importante manter uma “política de favores”, que só é possível devido sua privilegiada riqueza. Sem a riqueza, o poder de barganha, a negociação, estão comprometidos; ela permite a aquisição de respeito político, mas para isso, antes, precisa manifestar-se em presentes, em patrocínio político. A fortuna torna-se necessária para ocorrer a “troca” envolvida numa relação clientelista, onde prestígio e lealdade são conferidos por parte de quem encontra-se numa situação de desigualdade, por achar-se em dívida para com o coronel (SINDERSKI, 2000, p. 12-13).
O coronelismo, enquanto vigente no interior do Estado, foi um dos sustentáculos das oligarquias catarinenses. Identificou-se permanentemente com a História do Contestado enquanto existiu alguém que fosse, respeitosamente, tratado como “Coronel”. Por vincular-se essencialmente ao meio rural, dentro do mesmo espírito de dominação, o poder político do “Coronel” (da fazenda) começou a ser dividido com o do “Capitão” (da indústria), quando do advento da urbanização e industrialização no Contestado. Em seguida, o coronelismo seria substituído por uma nova forma de expressão de poder político, que deu-lhe continuidade mesmo com a ausência da figura típica do “coronel”: o neocoronelismo, instituição que manteve, nas bases eleitorais, o suporte ao sistema oligárquico.
8 A Ocupação do Território Contestado após 1917
Questões de terras – Empresas colonizadoras – Imigração – Colonização
8. 1 A intervenção monopolista e imperialista no Contestado
A Guerra do Contestado coincidiu com a I Guerra Mundial. Uma nova roupagem do capitalismo – monopolista e imperialista – adentrou com força no Contestado. A ruptura foi social e cultural. No sentido em que, ao olhar do opressor, uma determinada população (a cabocla, luso-brasileira, que não presta), foi fadada ao desaparecimento, para viabilizar sua substituição por outra (de imigrantes, colonos, trabalhadores), dos primeiros restando alguns sobreviventes. A limpeza da área foi radical. Foi uma guerra de extermínio.
O rompimento das relações antigas de um espaço geográfico amplo e de um território livre deu-se quando os caboclos tiveram que conviver com a modernização do território, mediante a ação firme e resoluta do Estado intervencionista (brasileiro, paranaense e catarinense) e de investimentos de capitais estrangeiros (presença do Imperialismo no coração do território livre).
O caboclo cinde-se como ser humano. A divisão se manifesta através da intervenção do poder monopolista, amparado pelo Estado, pelo poderio econômico e pelos fazendeiros. A construção da ferrovia, as madeireiras e a colonização estrangeira modificam as relações sociais da comunidade cabocla com os invasores de seu território livre. O rompimento do mundo livre (a terra, a vida e a irmandade) para um mundo de opressão, que começa com a pilhagem de suas terras e de seu território e termina com a intervenção sanguinária do braço armado de civis e militares, passando pelo controle do poder político, do deslocamento dos direitos individuais para a opressão do Estado, do deslocamento de idéias e vida próprias ao território livre para idéias e forças que vinham de fora e se instalaram como forças armadas no espaço dos caboclos, espaço reconhecido pela Lei de terras de 1850.
A partir da conquista armada e da modernização feitas pelo poder estatal e monopolista, o caboclo foi afastado do desenvolvimento, passando os benefícios do progresso para os fazendeiros e, posteriormente, para os colonizadores. No fundo, o poder político controlava o progresso e o povo – como já o realizara antes nas diversas revoluções abafadas – com a idéia positivista de que somente os homens que superaram o estágio religioso e metafísico e atuam no estágio positivo, conseguem realizar o desenvolvimento e o progresso, nem que isso exigisse a guerra e a limpeza da área. Em outros termos, somente os homens do Estado, os do capital estrangeiro, os fazendeiros e os agricultores experientes da colonização conseguem o progresso. É um pensamento próprio à Velha República.
Assim, o pensamento religioso, popular e fanático do caboclo – fundamental para seu equilíbrio social – devia desaparecer com o extermínio dele próprio. A religiosidade institucional será vitoriosa quando se modifica o território, colocando ali os colonizadores do progresso. A formação arcaica da comunidade cabocla devia ser superada pela educação escolar dos filhos dos colonos, uma educação adaptada á sociedade burguesa.
O homem do Contestado, primitivo, foi cindido pela guerra e substituído pelo homem colonizador, o homem-colono de um novo ambiente rural, produtor, que a seguir será o moderno, o industrialista, o urbano. Neste processo de expansão do capitalismo, a educação escolar vai se desenvolver timidamente em todo o Planalto Catarinense – agora “antigo” Território Contestado – que hoje encontramos sub-dividido em quatro regiões homogêneas internamente: Planalto Norte, Zona de Campos, Zona do Rio do Peixe e Zona do Alto Uruguai.
8. 2 Os planos de colonização do Oeste Catarinense
A linha (curso) da foz do Rio Canoinhas (no Rio Negro) às suas nascentes e destas às nascentes do Rio do Peixe até a sua foz (no Rio Uruguai) passou a ser considerada como “fronteira provisória” entre os estados litigantes em 1879. No final do século passado e início deste, o Paraná administrou e promoveu a ocupação das terras do Planalto Norte e da margem direita do Rio do Peixe, e Santa Catarina as terras da margem esquerda.
O Estado de Santa Catarina encontrou muitas dificuldades para desencadear seu plano de povoamento nas terras que lhe foram anexadas por força do acordo de limites com o Paraná, à vista da sobreposição de títulos sobre as glebas demarcadas e destinadas à colonização. Como grande parte dos imóveis haviam sido legitimados pelo Paraná, antes de 1916, tanto à Companhia Estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG) como a fazendeiros e a especuladores paranaenses, as questões foram levadas aos tribunais. O Governo Catarinense perdeu todas as ações judiciais movidas contra a companhia.
O Governo de Santa Catarina escolheu como sistema de colonização do Território Contestado a cessão de imensas glebas de terrenos devolutos a particulares, preferencialmente àqueles que compartilhavam o poder político e se propunham à abertura de estradas, titulando-lhes, em parte, as mesmas terras que o Paraná havia concedido à EFSPRG. As ligações rodoviárias foram eleitas como de fundamental importância para a integração catarinense.
Após a guerra de extermínio ao caboclo, efetivamente, o surto de desenvolvimento econômico na Região do Contestado começou quando da chegada das primeiras levas de imigrantes europeus, alemães, italianos, poloneses e ucranianos, e de descendentes de imigrantes, na maioria ítalo-brasileiros e teuto-brasileiros, que vieram, tanto para explorar a floresta, em latifúndios, implantando a indústria da madeira, como trabalhar na agricultura, em minifúndios. Entre outros resultados, a partir da década de 1920, sobressaíram-se a indústria madeireira e o modelo agrícola minifundiário e policultor, que gerou a agroindústria.
8. 3 Isolamento do caboclo luso-brasileiro
O término da Guerra do Contestado não foi o fim da violência na Região do Contestado, pois ela não acabou com o homem do Contestado. Vencidos na guerra, rendidos e derrotados, envergonhados, tendo sido processados e presos, centenas de caboclos voltaram aos seus pontos de origem, condenados pela opinião pública e discriminados pelos rótulos imperialistas. Evitaram contatos, internaram-se nos sertões, fugiram das cidades e distanciaram-se da civilização.
Depois de 1918, iniciado o processo de colonização nas terras demarcadas pela Brazil Railway Company, através da Companhia Estrada de Ferro, da Lumber e da Brazil Development Company, centenas de famílias caboclas continuaram ocupando áreas que consideravam livres... e áreas das suas antigas terras, que tinham como devolutas. Gradativamente foram sendo, de novo, sumariamente expulsas, na medida em que a ânsia de madeireiros avançava sobre os pinhais nativos, em que as levas de imigrantes se instalavam nas terras que pensavam ser suas e, na medida em que a gula de fazendeiros estendia suas cercas de arame farpado até limites a perder-de-vista.
Nas décadas de 1920 e 1930, em praticamente todas as glebas destinadas à colonização, encontravam-se famílias luso-brasileiras, ali moradoras desde há muitos anos, abrindo-se uma nova frente de conflito, pois alguns colonizadores – não todos – ameaçaram expulsá-las, com o uso da força policial, ou mesmo, através de capangas e capatazes.
Em tempos recentes, de outros e novos conflitos e entreveros, registrados entre posseiros e grileiros, entre facções coronelistas, entre forças políticas e militares, mais de uma vez o caboclo reagiu ao seu modo, de novo não hesitando em apelar ao emprego do instrumento que, no passado, tanto lhe ensinaram usar e impregnaram na sua cultura: a violência, a impetuosidade, o uso da força bruta braçal, algo típico dele, uma das poucas armas que restaram ao seu alcance. E o que é "violência", senão força bruta, grande impulso ou ímpeto? E o que é "ser violento", senão ser impetuoso, agitado, tumultuoso, fogoso, intenso, referindo-se àquele que atua com força? Só com estas características o primitivo homem do Contestado conseguia viver (e sobreviver) no seu cotidiano nesta "terra-de-ninguém".
8. 4 Terras para colonização
Para a construção de uma estrada de ferro entre Itararé (em São Paulo) e Santa Maria (no Rio Grande do Sul), em 1889, inicialmente, o Império do Brasil cedeu à parte interessada, gratuitamente, terras nacionais e devolutas, mesmo as compreendidas dentro de sesmarias e posses, numa zona máxima de até 30 km para cada lado do eixo da ferrovia
A concessão para a construção da ferrovia foi confirmada pela República em 1890, mas retificada em alguns pontos. Mesmo assim, manteve os incentivos à construção, principalmente o que incluía a doação de terras, só que, agora, ao invés da faixa de 60 km de largura, reduziu-a para 30 km.
Depois, reduzindo a linha para até o Rio Uruguai, fixou a concessão como sendo o equivalente a uma área cuja superfície deveria ser igual ao produto da extensão quilométrica multiplicada por 18, ou por nove quilômetros de cada lado do eixo da linha, desde que os terrenos escolhidos e demarcados se situassem dentro de uma zona com extremos, no máximo a até 15 km do mesmo eixo. A extensão do trecho Itararé-Rio Uruguai era de 883 quilômetros, que multiplicados por 18, resultavam numa área de 15.894 km². Fazendo as devidas contas, a companhia teria direito, então, a nada menos do que 1.589.400 hectares, ou a 656.778 alqueires paulistas, ou a 65.523 colônias.
Do total dos 883 quilômetros da extensão Itararé-Rio Uruguai, 511 km ficavam dentro do território do Paraná e 372 km na região contestada pelos Estados do Paraná e Santa Catarina. Na época da inauguração da estrada, em plena questão de limites, as terras da margem direita do Rio do Peixe eram administradas pelo Paraná, através dos municípios de Porto União da Vitória e de Palmas, enquanto que as da margem esquerda (por onde passaram os trilhos) estava sob controle de Santa Catarina, pelos municípios de Curitibanos e de Campos Novos. Assim, as reclamações da Brazil Railway Company se dirigiram ao Estado do Paraná, reivindicando a entrega de 9.198 km² de terras, correspondentes aos 511 quilômetros integrais da linha em seu território e, mais 3.348 km² da sua metade ocidental na Região do Contestado, e se voltaram a Santa Catarina, na reivindicação de 3.348 km² dos terrenos marginais orientais ao longo do Rio do Peixe. Do total dos 15.894 km², então, 6.696 km² estavam no Contestado, representando 276.694 alqueires.
A Companhia respeitou muitas posses antigas, e seus agrimensores demarcaram então as terras tidas como abandonadas, sempre ao longo da faixa dos trilhos e na área máxima de até 30 quilômetros. Terminadas as demarcações, a companhia concluiu que, na zona privilegiada, faltavam muitas centenas de quilômetros quadrados. Nova demarcação foi feita, desta vez com o emprego de processos obscuros, ganhando a Companhia mais algumas porções.
O Estado do Paraná titulou à São Paulo-Rio Grande, pela construção do tronco Itararé-Marcelino Ramos e do Ramal do Paranapanema, os seguintes imóveis, grande parte deles em áreas depois cedidas para Santa Catarina:
Terras Tituladas pelo Estado do Paraná à EFSPRG entre 1911 e 1918
Data Nome Área em m² Município do PR
13.02.1911 Legru 105.666.700 União da Vitória
09.09.1911 Iguaçú 54.709.670 União da Vitória
01.09.1911 Leãozinho 403.999.465 Palmas
12.09.1911 XV de Novembro 306.257.595 Palmas
10.10.1911 Lageado Liso 17.701.393 União da Vitória
04.11.1911 Uruguai 371.908.795 Palmas
27.11.1911 Rancho Grande 325.702.000 Palmas
17.01.1912 Rio do Engano 1.073.582.684 Palmas
26.09.1912 Pepery 4.236.200.000 Clevelândia
27.03.1913 Chapecó 1.506.097.000 Clevelândia
31.03.1913 Pinhão 14.056.380 Guarapuava
17.06.1913 Rio Preto 209.286.939 Palmas
16.06.1913 Arroio Bonito 71.507.396 Guarapuava
31.08.1917 Rio Claro 27.406.349 São Mateus
31.08.1917 Rio do Peixe 30.264.835 Palmas
31.08.1917 Esperança 77.617.998 União da Vitória
31.08.1917 Rio da Areia 508.877.200 Guarapuava
07.10.1918 Chopim 715.280.143 Clevelândia
07.10.1918 Rio das Cobras 630.040.000 Guarapuava
Fonte: Pesquisa do autor em cartórios em Curitiba (PR)
Apuramos que as propriedades que o Paraná titulou para a EFSPRG entre 1911 e 1918, alcançaram o total de 10.686.162.540,00 m². Depois, o Paraná titulou, ainda, outras terras para a EFSPRG, como a gleba Missões, com área de 4.257.100,00 m², localizada no Município de Clevelândia, em 1920, mais as glebas Chopinzinho, Silva Jardim e Andrada, também no Sudoeste.
Se somarmos as propriedades tituladas à EFSPRG às da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, que manteve as terras adquiridas até esta data, nas margens esquerdas dos rios Negro e Iguaçu, num total de 3.248.000.000 m² (134.214 alqueires), podemos resumir estas questões com o Truste de Toronto, concluindo que o Sindicato Farquhar, no final das contas, firmou-se como legítimo proprietário de 11.966.995.000,00 m², ou 494.504 alqueires de terras virgens e antes livres no Território Contestado, que lhes foram inicialmente tituladas pelo Estado do Paraná, destinadas para a devastação florestal e para os projetos de colonização
8. 5 Políticas para a colonização
Com posses legalizadas pelo Paraná sobre alguns milhares de hectares na região do Contestado, a EFSPRG passou à tentativa de promover diretamente a colonização das terras já demarcadas, seguindo um novo plano – o terceiro – este aprovado pela União, baseado nas mesmas normas do Decreto de 1907, salvo algumas ligeiras modificações. Junto às estações ferroviárias, foram projetadas pequenas vilas, divididas em lotes urbanos, reservando-se a companhia, além da faixa de terras de 50 metros (25 metros para cada lado do eixo) paralela aos trilhos, apenas um “quadro” para cada estação. Nestes quadros, estavam: a estação, depósito de cargas, depósito de lenha, armazém de abastecimento, caixa d’água, casas dos ferroviários e pátio de manobras. Partindo das estações, previu-se a abertura de linhas coloniais (estradas de rodagem que partiriam das vilas e adentrariam as áreas demarcadas) ao longo das quais se situariam lotes coloniais, a serem vendidos a imigrantes que se dedicassem à agricultura e à pecuária. Nestas linhas instalar-se-iam “sedes” com perímetro urbano próprio, divididas em lotes pequenos, onde se construiriam igrejas e escolas.
À vista do fracasso das tentativas iniciais, resolveu a Companhia promover a colonização de forma indireta, ou seja, vendendo ou cedendo direitos para a venda de grandes glebas de terras a particulares, que formariam empresas colonizadoras, a exemplo do que já se fazia em outras partes do país. Diante desta nova possibilidade, que mais tarde se revelou como a ideal, a Companhia alterou novamente seus planos. Uma das providências foi passar parte das terras a que tinha direito para outra subsidiária da Brazil Railway Company, a Brazil Development and Colonization Company, ficando então ambas com poderes para a venda de lotes.
Juntas, as duas empresas dirigiram suas atenções às colônias do litoral catarinense (alemãs e italianas) e às chamadas “colônias velhas” do Rio Grande do Sul, estas últimas ocupadas desde há muitos anos por imigrantes alemães e italianos e seus descendentes, que demonstravam interesse em procurar novas terras para se estabelecerem. As empresas foram ao encontro destes anseios, proporcionando aos colonos gaúchos a esperança de sucesso em novas terras, oferecidas como se fossem altamente produtivas, de fácil acesso e ótima localização.
O Governador de Santa Catarina, Hercílio Luz, enquanto questionava a posse das terras tituladas pelo Paraná à EFSPRG, já em 1918, resolveu conceder glebas imensas, que considerava devolutas, a empresas particulares organizadas por seus amigos e/ou correligionários, que se propunham a abrir estradas no interior, principalmente no Território antes Contestado. Inicialmente no Vale do Rio do Peixe e depois ao longo do Vale do Rio Uruguai, abriram-se as portas do Oeste Catarinense para a ocupação por imigrantes, só que, na maioria, por famílias descendentes dos imigrantes pioneiros das colônias velhas gaúchas e não mais vindos diretamente da Europa. Os egressos, italianos, alemães, poloneses, teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros, puderam adquirir os lotes coloniais e neles se estabelecer.
Como exceção à regra, um projeto de colonização das terras do Território Contestado, a Oeste do Rio do Peixe, margeando o Rio Uruguai, foi elaborado por uma empresa que nada tinha a ver com a Companhia EFSPRG e nem com o Governo do Paraná. A pioneira em empreendimentos desta natureza, pela iniciativa privada, foi a Empresa Colonizadora Luce, Rosa & Cia. Ltda., constituída em Porto Alegre, em 1910, antes mesmo da inauguração da ferrovia e sem nenhum vínculo com ela e, também, seis anos antes do Acordo de Limites, ela que estruturou-se numa área de 91.025 hectares em ambas as margens do Rio Uruguai, portanto, com parte no Contestado e parte no Rio Grande do Sul.
Em 1908, quando a EFSPRG iniciou a demarcação das terras marginais da ferrovia a que tinha direito, grande parte das encontradas nas barrancas do Rio Uruguai pertenciam aos srs. Adolpho Guilherme Luce, Timótheo da Rosa, José Petry e outros, que as haviam adquirido da Baronesa de Limeira, de São Paulo, no ano de 1883. Proprietária de 3.641 colônias de 25 hectares cada, no Alto Uruguai, a Luce-Rosa pressentiu o impulso que a região teria quando a ferrovia iniciasse a venda de lotes, e antecipou-se na colonização da sua propriedade, que incluía 2.041 colônias no Contestado e de outras propriedades menores que veio a adquirir na região logo depois. Pouco mais tarde, em 1915, para dinamizar o projeto, a Luce-Rosa instalou uma filial junto a Estação de Barro (atual Gaurama-RS), de onde passou a coordenar a venda de lotes, a abertura de estradas, a construção de pontes e serviços complementares, nas colônias gaúchas e catarinenses, dentro dos atuais municípios de Chapecó, Seara, Itá, Concórdia e outros.
8. 6 As empresas colonizadoras
Somente em fevereiro de 1924, quando foi encerrada a questão judicial entre o Governo de Santa Catarina e a Brazil Railway Company, acertaram-se as bases para a efetiva colonização nas terras que ambos disputavam. As negociações haviam começado ainda em 1922, durante a questão, concluindo que a empresa Brazil Development and Colonization Company, que recebeu as terras do Sindicato Farquhar, poderia transferir as concessões para terceiros. Assim, temos o primeiro quadro da transmissão definitiva das seguintes propriedades que foram legitimadas, entre 1914 e 1926, para a Brazil Development:
No Oeste Catarinense:
- O imóvel Xapecó, de 540.622.762,00 m², recebido em novembro de 1924, que inicialmente ficou com a Brazil Development, depois passou para a Companhia Territorial Sul Brasil S/A.
- O imóvel Pepery-Guassu/Xapecó, com 737.035.472,00 m², legitimado em abril de 1924, foi confiado para a Empreza Peperi-Xapecó Ltda.
- O imóvel Capetinga, com 174.889.653,00 m², recebido em fevereiro de 1926, passou para Nicolau Bley Neto e José Luiz Maia.
- O imóvel Rio Saudades, com 913.634.804,00 m², titulado em fevereiro de 1926, passou para Ernesto F. Bertaso e Manoel dos Passos Maia, que fundaram a Empreza Colonizadora Bertaso, Maia & Cia.
No Alto Uruguai Catarinense:
- O imóvel Rio Engano, com 1.073.582.648,00 m², recebido em fevereiro de 1924, foi entregue para a Sociedade Territorial Mosele, Eberle, Ahorns & Cia.
- O imóvel Rancho Grande, de 325.702.000,00 m², escriturado também em fevereiro de 1924, passou para a Empreza Povoadora e Pastoril Theodoro Capelle & Irmão.
No Alto Rio do Peixe:
- O imóvel Rio Preto com 221.852.730,00 m², foi desdobrado, sendo a gleba Rio Preto entregue para a Empreza Povoadora e Pastoril Theodoro Capelle & Irmão, enquanto que a gleba Caçador foi passada para a Empresa Construtora e Colonizadora Irmãos Coelho de Souza Ltda.
- O imóvel Propriedade Caçador Antas e Pedras, com 28.405,9475 hectares, foi transferido à Empreza Povoadora e Pastoril Theodoro Capelle & Irmão.
No Médio Rio do Peixe
- O imóvel XV de Novembro, num total de 306.257.595,00 m², com partes comercializadas pela Brazil Development através do seu Departamento de Terras, Cidades e Colonização, e de procuradores, também foi desdobrado em blocos, que foram passados para a Colonizadora Alberto Schmidt, a Empresa Construtora e Colonizadora Irmãos Coelho de Souza Ltda. a Colonizadora Selbach, Matte, Opermann & Cia., esta que depois se transformou em Kroeff, Selbach & Cia.
No Baixo Rio do Peixe:
Depois do pouco sucesso na iniciativa de colonização da Colônia Rio do Peixe, em 1911, pela Cia. EFSPRG, com a criação do Município de Cruzeiro, em 1917, entre o Rio do Peixe (limite com o Município de Campos Novos) e o Município de Chapecó, a Oeste, teve início a efetiva colonização das terras marginais aos trilhos, localizadas no Baixo Vale do Rio do Peixe, em glebas demarcadas pela EFSPRG e, em parte, repassadas à Brazil Development.
Duas empresas organizaram-se para empreender a colonização das concessões da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande: primeiro, a Sociedade Territorial Sul Brasileira H. Hacker & Cia. (que também atuou no Vale do Iguaçu), integrada por Henrique Hacker, Rudolfo Ahrons, Abramo Eberle, Augusto Scherer, Hugo Gerdau e Adelino Sassi, entre outros, e a Mosele, Eberle, Ghilardi & Cia., formada pelos sócios da primeira mais Leonel e João Mosele. Mais tarde, fruto de associação parcial entre as duas, surgiu a Sociedade Territorial Mosele, Eberle & Ahrons Ltda. Estas empresas, mais a Brazil Development e a própria Cia. EFSPRG, fincaram as bases para a colonização das glebas das fazendas e/ou colônias de Bom Retiro, Leãozinho, Capinzal, Rio do Peixe e Uruguai, com porções também na margem esquerda do Rio do Peixe, no Município de Campos Novos, alcançando ainda a região de Concórdia, mais a ocidente.
No Vale do Iguaçu:
- O imóvel Lageado Liso, na Colônia Maratá, em Porto União, com 17.701.393 m², passou para a Colonizadora Max Metzler.
- O imóvel Legru, com 105.666.700,00 m², e o imóvel Esperança, com 77. 617.998,00 m², em Porto União, foram colonizados em parte pela Brazil Development e, em parte, pela Colonizadora Henrique Hacker.
Algumas das colonizadoras pioneiras, que ficaram com áreas muito grandes, diante das dificuldades de comercialização antes e durante o tempo do Estado Novo e, dos prazos a cumprir, sob pena de terem que devolver as terras ao governo, serviram-se de outras empresas menores. Ao mesmo tempo, surgiram novas colonizadoras, que adquiriram terras de particulares e empreenderam seus próprios projetos para o povoamento da Região do Contestado, como a Luce-Rosa havia feito no Alto Uruguai. Nestes casos destacaram-se, por exemplo, o próprio Henrique Hacker, (em Herval d’Oeste e na Colônia Bom Retiro), mais a Kurudz & Bortolon Ltda. (na Colônia Caçador), a Angelo De Carli & Irmãos ( em Ponte Serrada), a Colonizadora Alberto Schimidt (partes da Fazenda São Bento e da Fazenda Rio das Pedras), a Freitag, Geib e Deis (em Piratuba e Ipira),a Formighieri, Prestes Maia Ltda. (Colônia Hindemburg, hoje em Fraiburgo), Picolli & Cauduro Ltda. (em Concórdia), além das empresas Nardi, Rizzo, Simon & Cia., Sociedade Volksverein, Bernardi & Paulo, entre outras, organizadas mais tarde..
Enquanto isso, especificamente no Planalto Norte, no eixo de Mafra, Itaiópolis, Três Barras, Canoinhas e Porto União, continuaram se expandindo as migrações de poloneses, ucranianos, holandeses, russos, italianos e alemães, a partir da chegada de novas famílias, vindas do Paraná e do Nordeste Catarinense.
8. 7 O chamamento de imigrantes ao ex-Contestado
Diferentemente do que aconteceu no Planalto Norte, o Oeste Catarinense, aberto à colonização em 1918, num primeiro momento, não pôde beneficiar-se com a vinda direta de europeus, devido à interrupção das migrações durante a I Guerra Mundial. Por este motivo, nossa História registra que a colonização aqui, na grande maioria, pode ser considerada como “de segunda ou de terceira mão”, ou seja, constituída mais por teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros (filhos e netos de imigrantes nascidos no Brasil), do que por alemães, italianos e povos de outras nacionalidades, estes, também na maioria, em nossa região obtendo a segunda ou terceira moradia.
Após as primeiras décadas do Século XX, marcadas pela chegada do imperialismo à região, pela Guerra do Contestado, pela I Guerra Mundial, pelo Acordo de Limites entre Paraná e Santa Catarina, e pelo início da fase de ocupação ordenada do Território Contestado, um novo panorama apresentar-se-ia nos últimos anos da República Velha com o movimento colonizador.
Talvez nenhum movimento colonizador, de quantos vimos citando, se tivesse verificado em momento tão oportuno, em ocasião tão propícia quanto êste, de conquista, ocupação e desenvolvimento do extremo oeste, pois, apesar dos intrusos, largas eram as áreas a desbravar, povoar e cultivar, alto o sentido de fixação, excelentes as terras e, principalmente, pacificada a região, depois de um prélio que quase a exauriu, prélio que sob o aspecto jurídico se desenvolvera nas côrtes de justiça e nos tribunais, à luz dos códigos e dos argumentos históricos e sob outro, o cultural, o sócio-econômico, decorrerá à sombra das matas, na fúria dos combates sangrentos, das tocaias imprevisíveis e dos ajustes selvagens.
Êste movimento de criação de colônias foi, em verdade, a verdadeira posse física da região, semelhante à que prescreviam as arcaicas ordenações, depois da posse judicial decretada pouco antes. Foi êle quem fêz subir a curva demográfica a alturas ainda não registradas, implantou novas rendas ao Estado e introduziu no colorido mosaico cultural do Estado elementos que já haviam sido aculturados em outros pontos e que, por isso mesmo, traziam novos matizes e novas tintas, emprestando uma nova fisionomia ao nosso complexo, fisionomia até então totalmente desconhecida (CABRAL, 1971, p. 50-51).
Depois de 1910, encontramos em comunidades da área rural do hoje Município de Porto União os registros das chegadas de dezenas de famílias alemãs, atraídas pelos planos de colonização das terras do chamado Ramal de São Francisco e da linha principal da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, nas localidades de São Pedro do Timbó, São Miguel, São José do Maratá, Bom Princípio, Despraiado, Maratá, Lança, Santa Cruz do Timbó, Caçadorzinho, Rio Campestre, Barra Grande, Rio d’Areia, Rondinha e Nova Pátria.
As primeiras famílias germânicas a chegarem à parte central da Região do Contestado, a partir de 1870 vieram da Alemanha, algumas delas tendo, antes, fixado-se em terras de Rio Negro (PR) e em outras colônias alemãs do Sul do Paraná, mais as famílias que se estabeleceram na Serra e Campos do Corisco (Santa Cecília) a partir de 1885 e, também, em Campos Novos, todas tidas como latifundiárias, em fazendas de criação e lavoura. Também chegaram os holandeses, que se instalaram nos campos de São João (Matos Costa), São João de Cima (Calmon) e Perdizes Grandes (Lebon Régis). Estas famílias, não mais minifundiárias, formaram as primeiras comunidades alemãs e teuto-brasileiras da parte central da Região do Contestado.
Ao Sul do eixo Porto União-Mafra, agora no Alto Vale do Rio do Peixe, ainda em 1910, a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande fez uma das primeiras tentativas de colonização das terras marginais aos trilhos, com a instalação dos pioneiros núcleos de famílias alemãs na Estação de Rio das Antas e Rio do Peixe, na margem dos trilhos recém-inaugurados, de forma simultânea, atribuindo-se a ambas a mesma importância desbravadora. A diferença notável é que para Rio das Antas acorreram imigrantes alemães que originalmente se destinaram às colônias do Nordeste Catarinense, como a Hansa, enquanto que Piratuba começou recebendo egressos das colônias velhas rio-grandenses. Entretanto, só uma tem sido lembrada.
A migração interna que se tornaria ponderável, de fato, passou a verificar-se em 1911, com Piratuba, para adiantar-se, posteriormente, com a formação de emprêsas criadas pelos incentivos catarinenses, depois do acôrdo de limites, quando o govêrno de Santa Catarina se afanava em povoar a região que passava para a sua jurisdição, no far-west que no momento era, não só pela situação geográfica como pela condição cultural.
Assim, alemães e italianos, natos ou apenas de origem, naturais êstes do Rio Grande do Sul, e todos dêle atraídos, introduziram-se na região, através de emprêsas colonizadoras, quase tôdas gaúchas, cujas concessões de terras haviam sido obtidas do govêrno de Santa Catarina. Da primeira etnia citada [alemã], formaram-se Itá, Mondaí, Itapiranga, São Carlos, Palmitos e outras; e da segunda, Capinzal, Barra-Fria, Xaxim, São Miguel do Oeste, além de outras (CABRAL, op. cit., p. 46-47).
O plano de colonização foi interrompido em 1914, por causa da Guerra do Contestado, sendo reiniciado em 1918, após a assinatura (1916) e homologação (1917) do acordo de limites interestaduais entre Paraná e Santa Catarina, pelo qual os dois lados do Rio do Peixe passaram à jurisdição catarinense.
Ainda antes de passar ao controle do Sindicato Faquhar, precisando de milhares de pessoas para trabalhar na construção da ferrovia em terreno paranaense, a EFSPRG, “importou” centenas de migrantes na Europa – alemães, italianos, ucranianos e poloneses – sob a promessa de assentá-los nas terras marginais aos trilhos. Esta corrente imigratória prosseguiu nos anos seguintes, aumentando consideravelmente o contingente europeu que foi instalado, primeiro em terras paranaenses, na margem direita do Rio Iguaçu e, depois, na margem esquerda, então, ao redor da Vila de Porto União da Vitória. A um grupo numeroso de operários, na maioria poloneses e ucranianos, foi viabilizada sua fixação - ainda que provisória – a partir de 1907, nas glebas Iguaçu, Legru, Lageado Liso e Esperança, no trecho da Linha Sul, quando do início da construção do trecho que ia em direção aos Campos de São João e às cabeceiras do Rio do Peixe.
Quando precisou de mão-de-obra para movimentar seu complexo industrial, em 1912, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, em Três Barras, privilegiou a contratação de poloneses e ucranianos originários da Colônia Lucena e das colônias do Vale do Iguaçu, seguindo orientações da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande que, ainda no final do Século XIX, promoveu a vinda destes imigrantes da Europa, bem como o aproveitamento dos que já estavam aqui instalados, para a construção do trecho entre Ponta Grossa e Porto União da Vitória, e para o ramal que demandava a Rio Negro. “Não sendo muito abundante a erva-mate na região, as atividades dos colonos concentraram-se na agricultura. Todavia, dado o grande mercado de trabalho criado pela construção da ferrovia, grande parte da população colonial derivou para aquela indústria, a que se dedicou definitivamente”. (RIESEMBERG, 1973, p. 103).
A Cia. EFSPRG, desde 1906, então incorporada ao Sindicato Farquhar, também preferia os eslavos para os trabalhos de assentamento dos trilhos e construção de pontes, pontilhões, caixas d’água e estações ferroviárias no trecho de Porto União da Vitória ao Rio Uruguai. Em 1910, com a abertura do tráfego, novamente deu preferência aos poloneses e ucranianos para trabalharem nas oficinas de manutenção e nos serviços operacionais das linhas, incluindo o preenchimento de cargos de maquinistas, foguistas, chefes-de-trens, chefias de estações e operadores de telégrafo. Isso explica por que, nos primeiros povoados das áreas lindeiras aos trilhos, residiam centenas de famílias de eslavos que não eram agricultores.
As atividades do comércio e dos serviços das cidades localizadas nas margens dos rios Negro e Iguaçu, ou na proximidade destas, foram imensamente favorecidas com a presença eslavo-paranaense, tanto antes como depois da Guerra do Contestado e da vigência do Acordo de Limites. Mafra, vizinhando com Rio Negro, Porto União, vizinhando com União da Vitória, mais Três Barras e Irineópolis, desenvolveram-se permanentemente sob a égide da mistura étnico-racial, recebendo moradores de origem eslava – vindos do outro lado – sem qualquer problema de relacionamento. Isso se verifica diante do fato de que, quando o Contestado foi aberto à colonização, a grande maioria destes imigrantes-paranaenses não seguiu o exemplo dos conterrâneos imigrantes-gaúchos. Ao contrário, ficaram onde estavam.
Neste sentido, a exceção foi com relação a uma parte das colônias do Alto Vale do Rio do Peixe, mais especificamente a de Caçador, que recebeu um bom número de italianos, alemães, sírio-libaneses, poloneses e ucranianos, originários do Paraná, estabelecidos em União da Vitória e em Porto União, ainda alguns anos antes do início do processo colonizatório deflagrado por Santa Catarina para atrair os rio-grandenses, mas isso tem explicação, pois parte das terras pertenciam, até 1917, ao Município de Porto União da Vitória e, deste ano até 1934, ao Município de Porto União.
A imigração italiana para Santa Catarina começou, de forma organizada, com registros para a História, a partir do contrato do Império com o Comendador Caetano Pinto, em 1874, destinando colonos para as regiões do Itajaí-Açu, Itajaí-Mirim, Vale do Tijucas e Sul do Estado. Estas iniciativas, assim, foram oficiais, tuteladas pelo Estado, ainda este que não estava devidamente preparado para receber os imigrantes.
As primeiras notícias de italianos na Região do Contestado estão vinculadas à História do Paraná, sabendo-se da chegada, em 1882, de três imigrantes, para a montagem do vapor “Cruzeiro”, lançado para a navegação no Rio Iguaçu. A imigração italiana começou a afluir só em 1875 no país, “atraída pelo governo imperial a quem pareceu sábia a decisão de misturar o elemento latino ao germânico, que prevalecia em todo o Sul do Brasil e que, desde então, começava a ser argumento de alguma inquietação” (DALL’ALBA, 1983, p. 105). Anos depois, em 1897, o engenheiro João Teixeira Soares, ele que seria um dos empreendedores pioneiros da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, proprietário da Fazenda Vila Zulmira, em União da Vitória, trouxe vários imigrantes para este município, entre eles as primeiras nove famílias italianas. A partir daí, incentivou-se a imigração de italianos e chegaram dezenas de famílias para desenvolverem atividades econômicas produtivas, distribuídas entre a cidade e o meio rural, também em áreas do hoje município catarinense de Porto União, espalhando-se pelo Planalto Norte.
Até o tempo da Guerra do Contestado (1913-1916), um mínimo de esparsos italianos fixou-se em cidades de outras áreas do Contestado. Encerrado o conflito regional e após a criação dos novos municípios de Cruzeiro (atual Joaçaba), Porto União e Mafra, teve início o plano de colonização das terras, que atraiu milhares de descendentes de imigrantes italianos das colônias velhas e mesmo das colônias novas do Rio Grande do Sul. Paralela e, simultaneamente ao fluxo de alemães e teuto-brasileiros, as levas de italianos e ítalo-brasileiros, atravessaram o Rio Uruguai e se dispersaram pelo antigo Território Contestado.
No Contestado, a imigração italiana foi marcada pela integração e convivência dos imigrantes (colonos) com a população considerada nativa (caboclos). Não se constituíram núcleos fechados, como ocorreu em outras partes do País e até mesmo no Paraná e em Santa Catarina. Na maior parte, os projetos colonizadores envolvendo os italianos e seus descendentes foram efetivados em colônias mistas, o que não permitiu o avanço da Italianità no Contestado naquele momento.
Para "evitar" os erros do passado, os imigrantes não deviam formar comunidades homogêneas, e a expressão "colônia mista" tornou-se denotativa da eficácia do processo de assimilação. Nesse caso, as novas áreas de colonização abertas no sul, principalmente no planalto catarinense e paranaense, deviam receber imigrantes de diferentes procedências, e também colonos nacionais, evitando a formação dos chamados "quistos étnicos" (SEYFERTH, 2005).
Agora, trataremos da imigração e do início do povoamento do Território Contestado, especificamente nos terrenos que compreendem o atual Grande Oeste Catarinense. Para efeito do nosso estudo, estas terras são as localizadas entre o Vale do Rio do Peixe (que corresponde ao Setor Ocidental da Região do Contestado) e a fronteira de Santa Catarina com a Argentina, tendo por limite natural, com o Estado do Rio Grande do Sul, o Rio Uruguai, atravessado em balsas, barcos e pontes por mais de cem mil imigrantes – na maioria italianos, alemães e poloneses – “de origem” ou seus descendentes que, das colônias gaúchas, emigraram em busca de novas terras mais ao Norte e de novas oportunidades de vida, em grande escala, de 1918 até meados da década de 1940. O fluxo que foi interrompido durante a II Guerra Mundial, sendo retomado logo após, porém, com menor intensidade, assim alcançando a 1960.
Até 1910, apenas algumas famílias, avulsas, haviam ousado adentrar o Contestado, acolhidas nos latifúndios dos fazendeiros, vindo a vizinhar com caboclos posseiros que se espalhavam pelos campos e pelas matas. O ingresso de cerca de cem mil pessoas ao Oeste Catarinense, número estimado para os chegados entre 1918 e 1940, originárias do Rio Grande do Sul, deveu-se à abertura dos núcleos coloniais, processo deslanchado em 1918, dentro da política de povoamento do Contestado do governo de Hercílio Luz e concretizado à medida em que iam sendo solucionados os problemas fundiários e organizadas as empresas colonizadoras.
Para conhecer um pouco esta “nova” população – que veio a constituir o homem do Contestado “contemporâneo” – recorremos às suas origens, ou seja, às colônias gaúchas, onde os imigrantes instalaram-se antes da mudança para Santa Catarina. Repetir-se-ia, aqui, o fenômeno ocorrido há muitos anos atrás, quando da formação do homem do Contestado “primitivo”, ou seja, mais uma vez o povoamento da região dar-se-ia por outros caminhos que não os da Serra-Abaixo Catarinense, região que mantinha uma vida própria, diferente do Planalto e que desenvolvia projetos de colonização com imigrantes mais concentrados nas planícies do litoral e nos vales dos rios que demandam ao Atlântico.
De modo geral, o processo de colonização, no Rio Grande do Sul, por povos da Europa Central, baseia-se em três correntes imigratórias: alemã, italiana e polonesa. A pioneira foi a alemã (a contar de 1824), seguida da italiana (em 1870) e da polonesa (de 1886 em diante), todas caracterizadas por terem sido feitas à base do trabalho livre e da pequena propriedade, e por terem enfrentado, no início, os mesmos problemas na instalação e de adaptação cultural. Também têm, em comum, o fato de contribuírem decisivamente para a formação da classe média urbana e rural, que veio a ser uma nova força entre a aristocracia oligárquica dominante, calcada no caudilhismo e no coronelismo, e os trabalhadores escravos e assalariados.
Os imigrantes constataram que somente poderiam enraizar-se neste “Novo Mundo” caso se mantivessem unidos e se solidificassem familiarmente. A mão-de-obra, ali inexistente e necessária para o desenvolvimento dos núcleos, teria que ser produzida no interior das próprias famílias. Daí, a geração de muitos filhos por casal. No passar dos anos, com a limitação geográfica das colônias impedindo a ampliação dos lotes, os filhos dos casais pioneiros, ao atingirem a idade adulta, tiveram que buscar novas terras, dividindo-as também com as novas levas de imigrantes que continuaram a chegar e já se dirigiam às colônias novas. Os períodos de redução da imigração externa, entre um plano e outro, vieram a favorecer as gerações que já estavam acostumadas às terras rio-grandenses.
Pelos mesmos fatores que provocaram a migração interna de italianos, alemães e poloneses das suas colônias velhas em direção ao Setor Setentrional Rio-grandense, as terras despovoadas ou sub-povoadas aquém do Rio Uruguai atraíram os desbravadores do Norte, Noroeste e Nordeste do Rio Grande do Sul. Alemães, italianos, poloneses, teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros, com suas numerosas famílias (não raras delas com mais de dez filhos), atraídos pela farta publicidade das novas colônias no Oeste Catarinense, começaram a adquirir os lotes coloniais nas diversas “linhas” (travessões) no outro lado do Rio Uruguai.
As empresas colonizadoras copiaram, no Contestado, o modelo que havia sido utilizado muitos anos antes para povoar o Rio Grande do Sul. Nem poderia ser diferente, pois o sistema era um paradigma rio-grandense para a abertura de núcleos coloniais e a grande maioria dos colonizadores descendia dos imigrantes pioneiros do vizinho Estado.
8.8 A entrada dos “gaúchos” no Contestado
As empresas colonizadoras, responsáveis pela dinâmica da imigração e do povoamento de todo o antigo Contestado-Paranaense e de parte do Contestado-Catarinense, compreendendo o “Grande Oeste Catarinense”, promoveram o acesso à pequena propriedade para milhares de colonos rio-grandenses. Paulo Fernando Lago estimou em 300 mil o número de “gaúchos” que, em busca de novas moradas, saíram do Rio Grande do Sul na primeira metade do Século XX. Uma parte deles fixou-se aqui, entre 1920 e 1950, constituindo famílias e gerando descendentes “catarinenses”, enquanto que outra parte seguiu direto para o Oeste e o Sudoeste do Paraná. Também houve aqueles que, depois de fustrações na tentativa de se fixarem no Contestado, optaram por “levantar acampamento” e se aventuraram nas novas fronteiras agrícolas paranaenses.
A maior parte dos colonos proveio da zona antiga que não havia se desenvolvido nas atividades secundárias e terciárias, num grau passível de assegurar a colocação de numerosa população rural existente nas áreas pecuaristas e das próprias colônias. Descendentes de estrangeiros, estrangeiros e gaúchos compuseram a dominante parcela dos ocupantes do Meio Oeste e do Oeste Catarinense. Dêsse modo, do Rio Grande do Sul partiu a ação promotora da ocupação e contribuiu, êsse Estado, com o elemento humano, considerado como excedente. Entretanto, o têrmo excedente não implica numa saturação demográfica das áreas riograndenses de irradiação. Nem tãopouco a corrida de colonos e gaúchos significava a busca de terras próprias. Muitos vendiam suas terras no Rio Grande e compravam as de Santa Catarina, que se apontava como detentora de novos “el-dorados”. E, como decorrência habitual dessa frenética busca, a decepção foi resposta para muitos.
No dizer de Idaulo José Cunha, em Evolução econômico-industrial de Santa Catarina (1982), juntamente com o Oeste Catarinense, o Centro-Oeste vivenciou o fenômeno da migração interna sul-brasileira, destacando-se a do Rio Grande do Sul para Santa Catarina, imediatamente seguida pela do próprio Estado sulino e mais a de Santa Catarina em direção ao Sudoeste e Oeste do Paraná. Segundo ele, no período de 1920 a 1940, o processo “imigração menos emigração”, direcionado de um meio rural para outro meio rural, resultou no acréscimo populacional de quase 90 mil pessoas nesta região.
A expansão demográfica ocorreu, predominantemente, do crescimento vegetativo da população e da imigração interna, esta representada por rio-grandenses de origem italiana e germânica que transpuseram a divisa Sudoeste de Santa Catarina e ocuparam as terras do Vale do Rio do Peixe e do Oeste do Estado. A imigração interna líquida de brasileiros natos, entre 1920-1940, foi de 88.807 pessoas, das quais. 76.394 habitantes haviam nascido no Rio Grande do Sul.
Sob o ponto de vista demográfico, a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande do Sul, além de provocar o início do fluxo imigratório para Santa Catarina, favoreceu o processo de transferência e fixação dos imigrantes.
O papel dos verdadeiros “transplantes” de comunidade do Rio Grande do Sul foi extremamente positivo, pois se constituiu em imigração no sentido rural-rural e teve curto período de amadurecimento, em razão da: a) relativa proximidade entre os pontos de origem e destino; b) da semelhança das terras; c) da experiência agrícola dos colonos.
Os efeitos sobre a população economicamente ativa pode ser despreendido dos dados censitários de 1920 e 1940. Em 1940, a área dos estabelecimentos rurais do estado era de 4.312 mil ha. e os naturais, do Rio Grande do Sul, possuíam 521 mil ha., contribuindo, outrossim, com 16,1% do valor da produção agrícola e registrando excepcional produção média por estabelecimento. A rápida ascensão econômico-demográfica do Vale do Rio do Peixe e do Oeste reflete e corrobora a assertiva. [...].O movimento migratório intramacrorregional, que beneficiou, de início, Santa Catarina e, após, o Paraná, decorreu, sobretudo, da constituição de excedentes populacionais nas zonas de colonização alemã e italiana do Rio Grande do Sul (mesmo aquelas de ocupação recente) e da atração exercida pela abundância de terras nas regiões captadoras (CUNHA, 1982, p. 123).
O êxodo riograndense, entre 1920 e 1950, expressou-se por uma cifra em tôrno de 300.000 pessoas, oriundas de suas antigas colônias. Somente em Santa Catarina viviam, em 1950, 120.700 rio-grandenses, e uma considerável cifra de catarinenses das regiões do Meio Oeste e do Extremo Oeste, era representada por descendentes de rio-grandenses. Seguindo o vale do rio do Peixe e os demais situados ao ocidente, a ocupação foi aos poucos atingindo os limites com o Paraná e com a Argentina, diferindo da direção tradicional Leste-Oeste. Desta feita, o movimento de ocupação humana se realizava no sentido Sul-Norte
Até por volta de 1928, o maior encaminhamento de rio-grandenses foi para as terras do Vale do Rio do Peixe, porém a situação inverteu-se nas décadas seguintes. Superando o Centro-Oeste, a partir de Xanxerê, Chapecó, Xaxim, São Miguel d’Oeste e outros centros de atração, a região do Extremo-Oeste registrou aumento populacional relativo de 118,0% entre 1940 e 1950, e de 161,4% entre 1950 e 1960. Lá, num primeiro momento, foram colonizadas as terras mais próximas às barrancas do Rio Uruguai, para, em seguida, serem abertas as fronteiras mais ao Norte. Na medida em que os terrenos iam sendo ocupados, o êxodo rio-grandense atravessou a fronteira Setentrional, alcançando o Sudoeste e o Oeste do Paraná, momento em que as levas migratórias foram reforçadas por descendentes dos “gaúchos”, já nascidos em Santa Catarina.
Na Região do Contestado, diante da imigração rio-grandense, o incremento relativo da população, entre 1940 e 1950, foi maior na zona do Vale do Rio do Peixe, polarizada por Caçador, Videira, Joaçaba e Concórdia (59,1%), do que nos Campos de Lages, compreendendo também Curitibanos e Campos Novos (32,3%) e do que no Planalto de Canoinhas, abrangendo ainda Mafra e Porto União (19,6%). Por outro lado, com o deslocamento da atividade madeireira, entre 1950 e 1960, o incremento nos Campos de Lages foi maior (43,4%), do que no Vale do Rio do Peixe (21,8%) e do que no Planalto de Canoinhas (10,6%).
9 Mudanças no Cenário Regional do Contestado
Transformações Sociais – As vilas – A produção – A transição
No Centro-Oeste Catarinense, aconteceram duas frentes distintas de “entradas” de imigrantes: a primeira, iniciada ainda no final do Século XIX, adentrou pelas terras do Setor Setentrional da região do Contestado, alcançando as escarpas das serras do Espigão e da Taquara Verde, constituída por imigrantes poloneses, ucranianos, alemães e italianos, no meio rural, mais sírios-libaneses nas áreas urbanas; a segunda, começou depois de 1917, chegando ao Vale do Rio do Peixe e ao Alto Uruguai, caracterizada pela vinda de famílias italianas, alemãs e polonesas das colônias velhas do Rio Grande do Sul que, rapidamente, vizinhando com os homens “nacionais”, sobreviventes da Guerra do Contestado e agora chamados de “intrusos” pelo Governo de Santa Catarina, ocuparam as terras rurais e desenvolveram os núcleos urbanos.
Aqui, resumiremos o processo imigratório da Região do Contestado, ocorrido dentro da política de colonização, eleita para o povoamento do território anexado por Santa Catarina, fenômeno que perdurou até a II Guerra Mundial, mostrando a vida difícil dos colonos-pobres que, adquirindo terras das empresas colonizadoras, araram a terra selvagem e a fizeram produzir alimentos, e dos colonos-ricos que, nos povoados, desenvolveram a indústria, o comércio e os serviços. Desta forma, destacaremos os primeiros empreendimentos econômicos instalados na região, no decorrer das décadas de 1920 e de 1930, além daqueles voltados à extração e beneficiamento da madeira.
9.1 O Contestado e suas contradições
Aqui expomos o que se investigou sobre a História do Contestado e sobre a formação/educação do homem da região. Também expomos o que consideramos o movimento do capital, desde a abertura das redes viárias, até o conflito bélico também e principalmente causado pela construção da via ferroviária e da conseqüência impactada na população local, ou seja, a intervenção do Estado oligárquico, aliado ao capital estrangeiro, realizou uma ruptura total no que se refere à economia e à cultura.
O território livre caracterizava-se por um estado em que os homens se acham naturalmente com a liberdade de ordenar a convivência, as posses e as leis comuns. Para uma tentativa de entendimento mínimo sobre o impacto que causou a presença do capital numa região em que praticamente predominava o “estado natural” da população, era preciso entender como foi possível a propriedade privada, o mercado e o capital, sob os auspícios do Estado intervencionista, acarretar uma transformação radical na região e na população.
Buscamos em Lênin um referencial teórico que explique a situação dos caboclos na transição do território livre para a instituição do Estado com sua força militar, suas leis e suas políticas desenvolvimentistas em parceria com os monopólios estrangeiros. Parece-nos que a teoria que faça entender essa transição é a dos referenciais de esquerda. Sem entrar em discussões e debates mais aprofundados, podemos apelar a Lênin, que recorreu à História realizada pelos homens e percebeu como surgiu o Estado e como se desenvolveu. Para este autor, o Estado nem sempre existiu. Foi uma construção histórica. Houve tempo em que “o vínculo geral, a própria sociedade, a disciplina e a organização do trabalho se mantinham pela força do costume, das tradições, pelo prestígio ou pelo respeito de que gozavam os anciãos” (LÊNIN, 1980, p. 179). A seguir, o autor fala – fala, pois trata-se de uma conferência – que “[...] a história mostra que o Estado, como aparelho especial de coação, dos homens, surgiu apenas onde e quando surgiu a divisão da sociedade em classes, isto é, a divisão em grupos de homens, dos quais uns podem constantemente apropriar-se do trabalho dos outros” (LÊNIN, 1980, p. 179).
O Estado, conforme Lênin, fazia as leis, as executava e punia o não cumpridor. As leis, historicamente, eram escravistas, feudais e capitalistas. Obrigava os escravos a permanecer na escravidão; os servos na servidão; os trabalhadores subordinados aos capitalistas. Em termos simples: quando um grupo de homens sentiu-se forte e submeteu outros homens a seu serviço, havia necessidade absoluta de manter essa situação de subordinados; havia necessidade de leis e punições para que se reproduzisse o trabalho subordinado. Então, surgiu o Estado.
Retornando à nossa problemática de pesquisa, a primeira parte do estudo aborda a questão da educação escolar, que não traz maiores problemas para uma explicação da história da educação burguesa. Aborda, também, a vida, cultura e o pensar dos caboclos isolados no sertão, sob a questão de formação de homem. A explicação se dá por meio de uma vida levada em estado de quase natureza. Neste estado, existia um Estado superdesenvolvido, em fase monopolista, mas, sua ação não se fazia ainda sentir na vida dos campos e das matas. Ali, a população tinha seu próprio código de honra, de convivência e de trabalho. Ali, também, o capital e o mercado não faziam sentir sua força e dominação nas consciências e na vida do caboclo isolado.
Adiante, nosso trabalho remete a uma primeira questão: por que o grupo monopolista, após a construção da ferrovia e da instalação de potentes serrarias na região, não realizou uma plantation em suas propriedades: por que vendeu as terras para colonizadoras realizarem grandes projetos imobiliários?
A resposta de que a companhia não se deu bem ao trazer colonos estrangeiros não é argumento, porque o conflito armado interferiu profundamente neste projeto. Se abordarmos a questão da fronteira agrícola do Rio Grande do Sul encontrava-se já fechada e havia necessidade de abrir novas frentes, foi uma questão real. Mas, ainda não explica por que o grupo Farquhar desistiu de grande parte de suas propriedades. Por causa de sua iminente bancarrota? Pode ser. Mas, há outro aspecto a ser considerado e que se resume em poucas palavras.
O Sindicato Farquhar buscou recursos financeiros na Europa e na América do Norte, a fim de construir a ferrovia e instalar serrarias. Teria que buscar um segundo aporte de capital para fazer produzir uma plantation. Os acionistas, provavelmente, queriam o retorno e não investir mais capital. A forma encontrada foi a de vender as terras às colonizadoras, acumular um capital com a venda e reforçar o grupo e os acionistas com novo capital. De outro lado, o Estado tinha interesse na colonização. Esta foi a forma mais barata e mais rápida para fazer produzir as terras em mata.
Após esta explicação teórica, vamos a uma questão datada de 1850, a Lei de Terras. E como foi um ponto estratégico para a transformação da terra em mercadoria e, posteriormente, na incorporação do trabalho ao domínio da produção. A promulgação da Lei de Terras e a conseqüente transformação da terra em mercadoria, em 1850, foram uma reordenação jurídico-administrativa que deu suporte à incorporação de extensas matas à rápida produção de excedentes, via pequena propriedade de colonos.
Todo o movimento histórico do Contestado, especificamente as guerras no Contestado, tinham como pressuposto a incorporação da terra ao capital. O capital – uma vez hegemônico na região – tendo incorporado a terra (a propriedade da terra) ao movimento da sociedade capitalista, incorporou, pouco a pouco, também o trabalho assalariado. Dessa forma, cumpriu-se o movimento do capital: transformar a terra em feição de mercadoria e o trabalhador em mercadoria, em função de seu valor de troca. É o que José de Souza Martins denomina dois momentos históricos que ocorreram – os processos de expropriação e de exploração: “O quadro clássico do capitalismo nos mostra o capital se expandindo à custa da expropriação e da proletarização dos trabalhadores do campo, uma coisa produzindo necessariamente a outra” (MARTINS, 1980, p. 17).
Esse movimento de incorporação tem a ver com o Estado oligárquico brasileiro. Na Primeira República começaram a alterar “as funções e a própria estrutura do Estado Brasileiro” (IANNI, 1986, p. 25). O Estado oligárquico foi um Estado burguês, mas atuava com uma modalidade singular de organização do poder político-econômico “em termos de estruturas de dominação-subordinação” (IANNI, 1986, p. 25). Como tal, o movimento da sociedade capitalista em inícios do Século XX revela “a acentuação dos conteúdos burgueses”. Criando condições para o pleno desenvolvimento do Estado burguês, um sistema que “engloba instituições políticas e econômicas, bem como poderes e valores sociais e culturais de tipo propriamente burguês” (IANNI, 1986, p. 25).
É preciso ver que no Estado oligárquico, no Brasil, as burguesias, a agrária e a comercial, ligadas ao setor externo (exportação e importação), tinham controle exclusivo do poder político. A partir de 1930, perderam completamente o domínio do poder político federal e estadual (IANNI, 1984, p. 117). Isso significa que, a partir de 1930, ocorre o predomínio do setor industrial sobre o setor agrário. A reprodução do capitalismo passou a ser governada pela reprodução do capital industrial (IANNI, 1984, p. 117).
O estado oligárquico, vigente durante a Primeira República, em 1889-1930, é todo ele marcado pelo arbítrio dos governantes contra setores populares que se organizavam para reduzir a exploração; ou lutavam para avançar em conquistas democráticas. Muitos padeciam a violência oligárquica, sob a forma estatal e privada: os seguidores de Antônio Conselheiro, em Canudos; os seguidores de João Maria, no Contestado; colonos nas fazendas de café, quando realizavam greves protestando contra as condições de trabalho e remuneração; operários nas fábricas e oficinas, por ocasião de assembléias e greves; seringueiros na Amazônia, quando tentavam escapar das malhas da escravização organizada no sistema de aviamento; populares do Rio de Janeiro, em 1904, quando protestavam contra a vacinação obrigatória (IANNI, 1984, p. 14).
Na política iniciada por Campos Salles (1898-1902), seguindo à abolição da escravatura e à queda da Monarquia, organiza-se um novo bloco agrário, representado no Estado oligárquico que predominou durante a Primeira República: “Tratava-se de entregar cada Estado federado, como fazenda particular, à oligarquia regional que o dominasse, de forma a que esta, satisfeita em suas solicitações, ficasse com a tarefa de solucionar os problemas desses Estados, inclusive pela dominação, com a força, de quaisquer manifestações de resistência” (SODRÉ, 1962, p. 306).
É no final do século XIX e começo do século XX, na presidência de Campos Sales, que se inaugura a política dos governadores, mediante a qual a sustentação da presidência da República e, reciprocamente, dos governadores, se dava com base num sistema de trocas de favores políticos. Os governadores, por sua vez, operavam dentro do mesmo esquema através de um sistema de trocas com os chefes políticos do interior, os coronéis (MARTINS, 1981, p. 46).
Geralmente, entre o presidente ou o chefe estadual e a massa votante se interpunham os coronéis e então tinha ele de se entregar a um trabalho muito habilidoso com o fim de harmonizar e coordenar as diferentes correntes e influências de modo a se manter no poder. Este resultado era conseguido por meio de um pacto tácito: o governo não se metia no município onde o coronel tinha carta branca para fazer o que quisesse, e em troco recebia o apoio do coronel (QUEIROZ, 1986, p. 118).
A “política dos governadores”, que se impôs a Campos Sales, se acomodava na realidade existente, a do grupo municipal, que tinha por fulcro o coronel.
Era, em escala federal, a mesma combinação existente no plano estadual, entre os presidentes de estado e os coronéis: dá-me teu apoio e terás carta branca. Mas era também a única combinação capaz de manter a estabilidade de uma República, construída sobre a base precária e instável dos interesses particulares e das lutas municipais (QUEIROZ, 1986, p. 122-123).
9.2 Aspectos da imigração e colonização
A seguir, abordaremos alguns aspectos, dentre aqueles mais marcantes, dos primeiros momentos da imigração e da fase inicial do povoamento do Contestado pelas famílias egressas do Rio Grande do Sul.
9.2.1 Abertura de estradas
As empresas colonizadoras receberam do governo catarinense autorização para comercializarem as terras com o comprometimento da abertura de estradas rodoviárias que ligassem as sedes das colônias aos núcleos coloniais, tudo conforme o projeto de ocupação e povoamento de cada gleba contratada. Para cumprir a exigência, nas áreas mais afastadas, os colonizadores contratavam os primeiros compradores de terras, cedendo-lhes os próprios lotes em pagamento. “Não raro, os vendedores das terras prometiam abrir estradas que dessem acesso aos lotes rurais, porém, em geral, depois de receberem o pagamento, a promessa não se cumpria e os compradores se viam na contingência de construírem as próprias estradas. Alguns trabalhadores, em retribuição aos serviços prestados, recebiam terra dos proprietários em troca do pagamento” (ORO, p. 22).
As estradas eram abertas manualmente, à base da foice, machado, enxada, pá e picareta, atravessando as matas, geralmente com a largura de quatro metros no leito, ladeadas por desmatamentos de oito metros em cada lado, não podendo ter aclividade superior a 8%.
Isto era um trabalho muito pesado. Começava-se de manhã às seis horas e terminava-se à tarde depois das dezoito horas. Os trabalhadores faziam três refeições: pela manhã, antes de começar e à noite, depois de parar o trabalho. Ao meio-dia, fazia-se um pequeno intervalo para o almoço. A comida era sempre a mesma: feijão preto com charque e arroz acompanhado de café preto. Dormia-se em ranchos que eram erguidos precariamente à beira da estrada. Como não havia máquinas ainda, todos os trabalhos eram realizados com pás, enxadões e picaretas. Às vezes utilizava-se também machado e foice de roçar. Um bom trabalhador ganhava, por dia, 6$000 (seis mil réis), além da comida (SCHREINER, 1996, p. 60).
Foi desta forma que as terras do Contestado foram rasgadas por estradas rodoviárias. Afora aquelas que se tornaram importantes vias de ligação entre os povoados e foram transformadas em rodovias, as demais, existentes nas zonas rurais de todos os municípios da região, mantêm, praticamente, o traçado original.
As construções
Nas terras adquiridas, os recém-chegados, primeiro, construíam um pequeno galpão, com telhado tipo meia-água, provisoriamente coberto de palha e de folhas, para servir de paiol de milho. Enquanto esperavam a construção da moradia familiar, no galpão, faziam as camas, que consistiam em quatro estacas fincadas no chão e nas quais estavam fixadas as travessas. Em cima destas, eram deitadas várias varas de taquara e, por cima, uma grossa camada de folhagem de taquara seca que servia de colchão, ou então, dormiam em cima de grossos sacos de palhas de milho.
As casas, pequenas, eram retangulares, como os imigrantes já haviam adquirido experiência em fazer nas colônias rio-grandenses. Obtinha-se o retângulo reto, fazendo-se um triângulo com três pedaços de linhas, emendadas, sendo uma de três metros, a segunda de quatro e, a terceira, de cinco metros. Nos quatro pontos extremos marcados, cavava-se o chão e, nas covas, colocavam-se os cepos e, então, sobre eles, vinha toda a madeira, tanto da estrutura das paredes, como do assoalho e, depois, a cobertura, pois a casa era coberta com tabuinhas. “As construções, dada a grande quantidade de madeira, eram edificadas de pinho. A madeira, tanto as tábuas como as vigas, caibros e barrotes, eram serrados a mão com enorme sacrifício e desgaste físico” (ORO, p. 24). O tamanho era suficiente para abrigar cozinha, sala e quartos de dormir e, na maioria das casas, a varanda. Mais tarde, obtendo sucesso na nova vida, o imigrante construía outra casa, maior e adequada à sua cultura arquitetônica.
Pouco distante da casa, era cavado um buraco, que seria a fossa da instalação sanitária, conhecida como “latrina”, “patente” ou “casinha”, uma construção de madeira por cima da fossa, para uso individual. Também se fazia o forno de pão, construído com tijolos de barro amassado e seco, em formas de madeira e pacientemente assentados; o forno era queimado por dentro, com uma fogueira, durante várias horas e, por fora, secava ao sol. Mais longe, erguia-se um pequeno galinheiro, com tábuas lascadas de pinho. Os colonos com mais recursos construíam, ainda, a estrebaria e o chiqueiro. Possuindo animais, depois dos cercados para as criações, a próxima construção era a casinha de defumação de carnes. Ao mesmo tempo, um pedaço do terreno era preparado para receber as hortaliças.
Quando não havia água corrente nas proximidades, a água potável era buscada no sub-solo, preferencialmente junto às encostas de morros, identificando-se os veios com o emprego da “forquilha”, pelo qual se podia até saber sua profundidade. Cavavam-se profundos poços circulares até chegar às veias d’água que, no fundo, formavam reservatórios, sendo extraída em baldes içados por correntes ou cordas, com o emprego de manivela.
Preparo da Terra
Os imigrantes egressos das colônias velhas e novas gaúchas, que vieram ao antigo Território Contestado, valorizavam a terra e, por isso, aqueles que eram agricultores, muitas vezes, lançavam-se ao preparo das áreas destinadas aos plantios, antes mesmo de erguerem suas construções. Escolhida a área, o trabalho começava com a roçada dos arbustos maiores e seguia com o corte das árvores de maior porte. O fogo era a solução mais rápida para preparar o terreno a ser cultivado. Livre de ervas daninhas, em um dia de trabalho, com o terreno limpo, podia-se plantar uma quarta de semente de milho com plantadeira manual em roça de cerca de 7 mil metros quadrados, mas, no terreno de queimada, atulhado de troncos, a tarefa era mais fácil quando executada com bastão de madeira, com ponta de ferro, para fazer as covas.
Todo colono sabia da importância da rotatividade dos cultivos no uso do solo, pois, naquele tempo, não havia corretivos (calcáreo) e adubos químicos. Por isso, o solo recebia primeiro as sementes de trigo, cultura que exigia terra ‘forte’, instituindo- se a seguir a rotatividade com o milho e o feijão. Depois, introduziam-se o centeio, a cevada e a mandioca.
9.3 Bases do desenvolvimento econômico regional
As empresas colonizadoras, na maioria organizadas no Rio Grande do Sul durante o transcurso da década de 1920, tinham, como público-alvo dos seus propósitos, as milhares de famílias de colonos que eram despertadas para a possibilidade de adquirirem áreas de terras maiores do que aquelas que ocupavam em solo rio-grandense, por preços bem mais baixos e, sem dúvidas, aguçadas pelo espírito aventureiro da mudança que lhes viabilizaria fincar raízes numa outra terra, em desbravamento, onde tudo estava por se fazer, na promessa de novos tempos para seus filhos.
Com os traços europeus dos italianos, alemães, poloneses e ucranianos, outros agricultores, que vinham ocupando terras no Sul no Paraná e no Nordeste de Santa Catarina, ali instalados pelo Poder Público e por empresas particulares, igualmente atraídos pela propaganda das colonizadoras, também enxergavam o auspício de vida mais promissora nas colônias em implantação no Planalto Norte, no Vale do Rio do Peixe e no Alto Uruguai.
Enquanto que, na zona colonial do Rio Grande do Sul, caracteristicamente minifundiária e policultora, onde o valor de um colono era medido pelo volume da produção que ele tirava da terra e não pelo sobrenome ou pela dimensão da sua propriedade, no Contestado ainda reinava o consenso da ótica latifundiária e monocultora, pela qual se media a importância de uma pessoa pelo número de alqueires do seu imóvel ou pela patente na Guarda Nacional. Por isso, se num primeiro momento, um lote colonial, de 25 hectares (quase um alqueire), era considerado grande demais para apenas uma família agricultora, logo depois se mostraria pequeno diante do fenômeno da rápida multiplicação da prole, ao repetir-se, aqui, a acelerada expansão do grupo familiar, motivada pela necessidade de cada vez mais braços para a lavoura.
No Centro-Oeste Catarinense, as condições geo-morfológicas microrregionais diferenciam os tipos de terrenos e sua utilização para cultivos. Os do Planalto Norte, abrangendo os vales dos rios Negro e Iguaçu e os vales de seus principais afluentes, apresentam-se mais planos e férteis, proporcionando melhor rendimento do solo. A Sudoeste, mantendo relativas semelhanças, os rios tributários da Bacia do Uruguai salientam os relevos do Vale do Rio do Peixe e do Alto Uruguai, reduzindo sensivelmente o aproveitamento dos lotes. Neste último setor, os colonos se alojavam, em geral, em vales cujas encostas íngremes, aqui e acolá suavizadas por patamares, exigem imenso esforço para o tamanho da terra. As declividades acentuadas dificultam, inclusive, a manutenção de animais de tração nas propriedades, devido à exigüidade de superfícies adequadas ao apascentamento. Os vales do Planalto, a par da relativa uniformidade dos níveis das superfícies superiores, estão profundamente encravados. Apresentam mínimas extensões de “terraços e várzeas”, isto é, de superfícies mais planas de acumulação aluvionar, como as existentes em bacias do Leste Catarinense (LAGO, 1988, p. 289).
Neste ponto da História, recordamos que, imediatamente após a anexação do Contestado-Paranaense ao Estado de Santa Catarina, a partir de 1918, o Governo de Hercílio Luz tomou as primeiras providências para conceder a empreendimentos colonizadores particulares, a troco das abertura de estradas, o direito de lotear as terras que considerava devolutas, portanto, de propriedade do Estado, mesmo enquanto disputava com a Brazil Railway Company, na Justiça, os direitos sobre boa parte destas mesmas glebas, por ações que tramitaram até 1924. As questões fundiárias, que se arrastavam nos tribunais, inibiram o povoamento uniforme de todo o Contestado, uma vez que algumas áreas foram abertas à colonização antes de outras. Assim, já a partir de 1921, à medida em que as soluções jurídicas davam ganho de causa ao grupo norte-americano, este se mobilizava-se para dar início à colonização, sem esperar que o Estado legitimasse os títulos, com o que viabilizou o ingresso dos imigrantes já na primeira metade da década de 1920.
As vilas que se formavam junto às estações ferroviárias e os pequenos povoados abertos em clareiras na mata, nas proximidades dos escritórios avançados das companhias colonizadoras, atraíam o imigrante voltado para as atividades de natureza mais urbana, como da indústria, do comércio e dos serviços. Porém, os lotes, ditos “coloniais”, eram o endereço certo para a grande maioria, vocacionada para a agricultura e esperançosa em produzir rapidamente o necessário para seu sustento, bem como alguns excedentes que possibilitariam ao colono a aquisição de bens de capital e de consumo que ele não produzia.
9.4 Agricultura
A chegada dos agricultores imigrantes ao Alto Uruguai e ao Vale do Rio do Peixe, na maioria ítalo-brasileiros e teuto-brasileiros, assim descendentes de europeus egressos das colônias velhas rio-grandenses, mais os que vinham da Europa (alemães, italianos e poloneses) e os originários do Paraná e do Nordeste Catarinense, que se dirigiam ao Planalto Norte e Alto Rio do Peixe, nesta área incluindo-se os ucranianos e russos-alemães, adicionados aos primitivos caboclos que se prestavam para plantios, fizeram com que a Região do Contestado adentrasse a década de 1930 já como importante zona de produção agrícola.
Em toda a Região do Contestado, mesmo nas áreas destinadas à colonização, o maior impasse ao estabelecimento de colonos eram os densos pinhais que ocupavam o solo. Se isso foi fator de impedimento para os loteamentos minifundiários destinados à agricultura, por outro lado, os pinheiros chamaram a atenção dos proprietários das colonizadoras e de rio-grandenses e paranaenses mais abastados que, empreendedores por natureza, previram a expectativa da fortuna pela instalação da indústria madeireira.
No Planalto Norte, de colonização alemã, polonesa e ucraniana mais antiga, os principais produtos cultivados no início do Século XX, eram: aveia, centeio, cevada, fumo, alfafa, melancia, abóbora, milho, trigo, batata-doce, batata inglesa, mandioca, amendoim, arroz em casca, ervilha, feijão, lentilha, alho e cebola, além das hortaliças e das frutíferas, como laranja, limão e tangerina. Compondo a História do Paraná, em 1920, Manoel Francisco Correia anotou que “lavrador nacional planta milho, feijão, mandioca, arroz, batata doce e abóboras; o italiano, vinha, milho e hortaliças, principalmente; o polaco, centeio, fagópiro, linho, trigo e cevada; o alemão, centeio, batata inglesa, frutas e hortaliças, de preferência a outras culturas” (Apud RIOSENBERG, 1969, p. 108).
Pouco mais de dez anos depois da abertura das frentes de povoamento, os colonos que se instalaram no Vale do Rio do Peixe despontaram pela produção de: arroz em casca, linho, aveia, centeio, cevada, fumo, alfafa, melancia, abóbora, milho, trigo, batata-doce, batata inglesa, mandioca, amendoim, ervilha, feijão, lentilha, alho e cebola, além das hortaliças e das frutíferas, como uva, figo, maçã, pêra, laranja, limão, caqui e tangerina.
No Alto Uruguai, a produção agrícola inicial foi marcada com os cultivos de: milho, feijão, trigo, arroz em casca, batata-doce, batata-inglesa, mandioca, laranja, lentilha, cana-de-açúcar, alfafa, amendoim, além das hortaliças e das frutíferas, como laranja, limão, tangerina, bergamota e banana.
Praticamente estes mesmos produtos eram cultivados em Campos Novos e em Curitibanos, só que em menor escala, considerando que boa parte de seus territórios era coberta por pastagens naturais (como eram os Campos de Lages) e, nestes municípios, em latifúndios, os fazendeiros dedicavam-se bastante à criação de gado bovino.
9.5 Da pecuárias à agro-indústria
A pecuária era a mais antiga atividade rural produtiva da Região do Contestado, iniciada ainda quando da instalação das primeiras fazendas de criação de gado, competindo em importância apenas com a erva-mate e com o tropeirismo. Dos nativos porcos-do-mato e dos introduzidos porcos “Macau”, tratados a pinhão e milho, o homem do Contestado Primitivo retirava apenas a carne e a banha necessárias para seu sustento.
Sobre a produção de derivados de carne bovina e da banha suína, em Nhá Marica, Minha Avó (1969), Alvir Riesemberg lembra que, no Planalto Norte, onde a presença da colonização alemã vinha desde 1829, foi sensível a influência germânica, fato que ocorreria também nas primeiras colônias alemãs do Rio Grande do Sul, que começaram a surgir na mesma época.
Um setor da nossa alimentação que sofreu sensivelmente a influência alemã foi o das carnes, não só no modo de prepará-las, mas ainda quanto à sua conservação. A salsicharia quase tôda desenvolveu-se sob o influxo do imigrante alemão, a que se viria juntar mais tarde o do colono italiano. As salsichas do tipo de Viena e de Frankfurt, os chouriços de fígado e de sangue, as pastas de carne, a que os alemães davam, respectivamente, os nomes wienerwurst, loeberwurst, blutwurst, schmierwurst, assim como as linguiças e vários tipos de salames, tão comuns no Paraná, foram formas novas de preparar e conservar a carne curitibana, permitindo aumentar o rendimento das rêses. Temos a impressão de que a própria conservação da banha foi contribuição alemã aos usos do planalto. Ao menos no interior do estado, até tempo bem próximo, a gordura do porco era conservada sob a forma de toucinho, sobre fumeiros, sendo derretida no momento em que devia ser empregada. Era o costume português (RIESEMBERG, 1969, p. 109).
Nos primeiros anos do Século XX, além dos bovinos indispensáveis para a tração e para a ordenha, foram introduzidas novas espécies de suínos, muares, eqüinos, ovinos, caprinos e aves que, devagar, formaram os grandes rebanhos regionais, ainda utilizados conforme as necessidades dos criadores. Entretanto, na leitura dos relatórios dos censos do IBGE e em publicações avulsas, constatamos que, em volume e em renda, a pecuária bovina começou a perder força no cômputo regional, na medida em que as criações de suínos e outras atividades ocupavam a população e, já em 1940, dividia espaço com a agricultura e a indústria da madeira, praticamente em igualdade de condições.
Criar porcos, soltos, naquele tempo, era uma atividade alternativa que dava sustentação, não só aos fazendeiros e aos caboclos primitivos, como também aos primeiros colonos que chegavam à região e precisavam ocupar-se de outros afazeres além da lida com os suínos. Sobre a criação de porcos “baguás”, soltos nas matas, ouvindo antigos criadores do Sudoeste do Paraná, Ruy Wachowicz explica o processo, o mesmo que era utilizado no Meio-Oeste Catarinense:
Inicialmente, a quantidade de pinheiros no sudoeste era tão grande que quando chegava o inverno, as pinhas se soltavam e forravam o chão de pinhão, ficava até avermelhado em baixo das matas. Não era portanto de se admirar que no inverno o pinhão tornava-se o principal alimento dos porcos. Nesse sistema de criação, que os caboclos chamavam de porco alçado ou de porco plantado, o único trato que os animais recebiam era o sal. Os caboclos que tinham um pouco mais de capricho, construíam um mangueirão. À tardinha, jogavam um pouco de milho no mangueirão, o que atraía os porcos. Passavam a noite no local. De manhã, no dia seguinte, jogavam um pouco de milho fora do mangueirão fazendo com que os animais saíssem e ali no mato passavam o dia. [...]. Outros ainda, quando à tardinha jogavam milho para chamar os porcos para o pernoite, tocavam uma buzina, desenvolvendo nos animais um sistema de reflexos. Todos então corriam para o mangueirão (WACHOWICZ, 1985, p. 90).
Outro sistema de “engorda” dos porcos, largamente utilizada no Contestado, era o da “safra” anual. Os caboclos queimavam uma porção de mato, onde plantavam milho e, no ano seguinte, depois do “tempo do pinhão”, reuniam e conduziam os animais para o interior da roça, para engordarem e comer sal. Os porcos gordos maiores, depois de recolhidos pelos “safristas”, eram conduzidos até os compradores, instalados, geralmente, junto às vilas e cidades da região.
Num primeiro momento da História, as “tropeadas” de porcos xucros, criados soltos nas matas, eram feitas “a pé” pelos tropeiros, desde as origens até os mercadores ou os abatedouros do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Santa Catarina e, até de São Paulo. A partir de 1911, abertas as estações ferroviárias, as conduções das criações passaram a utilizar os vagões da estrada-de-ferro, até que, com o advento das estradas rodoviárias, o caminhão transformou-se no principal meio de transporte.
A época era auspiciosa para o chamado “porco-tipo-banha” e, conseqüentemente, para as variedades rústicas existentes no Brasil, introduzidas pelos portugueses, em geral oriundas do continente africano. O porco “Macau” era uma delas, largamente utilizado nas colônias. Os óleos vegetais, à exceção do azeite de oliva, importado, eram praticamente inexistentes na cozinha dos brasileiros. Usavam-se, em geral, produtos diversos de plantas e semente oleaginosas em locais restritos, como o azeite de dendê no litoral do Nordeste, onde concentravam-se grandes estoques de descendência africana. A banha, enfim, era um produto de valor, inclusive para conservar alimentos nas áreas rurais e nas periferias urbanas (LAGO, 1988, p. 289).
As lavouras de milho plantadas pelos primeiros colonos na Região do Contestado viabilizaram o desenvolvimento sustentado da agro-pecuária a partir da suinocultura, agora tratada com o cereal, esta que, por sua vez, viabilizou a configuração do eixo agro-industrial no Centro-Oeste Catarinense, pela instalação das primeiras unidades frigoríficas de carnes suínas. Abastecendo-se nas pequenas propriedades rurais, as agro-indústrias desenvolver-se-iam paralelamente ao crescimento da agricultura e da suinocultura. “O binômio milho/porco era, pois, o caminho, embora estreito, para a viabilização da empresa colonizadora dos vales do Planalto, uma saída para evitar, em relação aos pequenos proprietários fundiários, a amarga perspectiva da prisão caboclizadora, legado da economia de subsistência”, expõe Lago (1988, p. 289).
A instalação de recém-chegados do Rio Grande do Sul ao Alto Uruguai e ao Vale do Rio do Peixe, a partir da década de 1920, nos povoados das colônias, nas vilas distritais e nas cidades-sedes de municípios, provocou, gradativamente, a abertura de estabelecimentos voltados à industrialização da riqueza animal, mais do que no Planalto Norte e no Planalto de Campos. As primeiras propriedades rurais minifundiárias da região caracterizavam-se por conter, simultaneamente, as lavouras, o potreiro e a estrebaria, o chiqueiro e o galinheiro.
Complementando a produção das lavouras e das criações, também já era substancial a produção, nas pequenas propriedades rurais, de leite in natura, ovos, mel e cera de abelhas silvestres, carnes de aves (galinhas) e de ovelhas, e sabões à base de gorduras. Entretanto, esta produção destinava-se mais para o consumo interno, com vendas a terceiros apenas dos excedentes. Junto às estações ferroviárias, estabeleceram-se mercadores que adquiriam os produtos dos colonos e os remetiam, através do trem, para os mercados consumidores.
As atividades da pecuária foram as propulsoras da formação da indústria de alimentos à base da produção animal na Região do Contestado já a partir da década de 1930, quando os municípios começaram a se destacar pela industrialização de carnes de bovinos e de suínos, principalmente, mesmo em caráter artesanal. Os principais produtos fabricados antes da entrada em operação de frigoríficos voltados às carnes refrigeradas e congeladas, eram: banha de porco, lingüiças e salsichas não enlatadas, presuntos, toucinhos salgados, salames, charque, queijos e manteiga.
Não podemos esquecer que a agro-indústria, calcada na riqueza animal, instalada na “Zona Colonial do Rio do Peixe” ou “do Meio-Oeste” (como o IBGE classificava o Alto Uruguai e o Vale do Rio do Peixe juntos), não surgiu aqui por acaso. Nas colônias velhas rio-grandenses, tanto alemãs, como italianas, na época inicial da colonização do Contestado, já proliferavam os frigoríficos instalados em cidades, vilas e povoados, dedicados à industrialização dos excedentes das propriedades rurais e concorrendo em importância com as vinícolas, os moinhos e os curtumes. Eram conhecidos, nos anos da década de 1920, o “salami”, a “mortadelle”, o “lombi” o “prosciutti”, o “ossocolli”, o “strutto”, a “carne affumicatta”.
Com a multiplicação de rebanhos suínos, alguns empreendedores lançaram-se à criação de estabelecimentos destinados à industrialização dos produtos agro-pecuários aqui mesmo, no então sonho de abrir mercados para a produção regional de produtos acabados. Várias foram as “fábricas” dessa natureza, algumas que sucumbiram por motivos variados, e outras que, não apenas sobreviveram, como progrediram.
Se o milho não faltava, muito menos os alimentos suplementares, também ricos em carboidratos, como a mandioca, a batatinha, a abóbora, que não encontravam mercados compradores. A idéia de converter o máximo de produtos agrícolas em carne suína formigava na cabeça de muitos empresários e colonos.
O passo seguinte a ser dado: criar indústrias de alimentos concentrando, pois, em espaços urbanos, tecnologias que eram, em parte, dominadas pelas famílias de colonos italianos e alemães, tradicionalmente apreciadores da carne de porco e de uma constelação de produtos e derivados. A rede de suprimento de matéria-prima industrial estava disponível e a qualidade da mão-de-obra industrial era indiscutível e abundante (LAGO, op. cit., p. 291).
Surgiram no Oeste e no Vale do Rio do Peixe os primeiros frigoríficos, os quais foram antecipados pelos moinhos e serrarias madeireiras. A indústria alimentar catarinense nos anos futuros terá nos estabelecimentos processadores da banha e carnes suínas um dos principais componentes da agroindústria e mesmo do setor industrial em geral (CUNHA, 1982, p. 158).
9.6 Indústria
Em 1940, a Região do Contestado apresentava-se representada pelos municípios de Mafra, Itaiópolis, Canoinhas e Porto União (no Planalto Norte), Curitibanos e Campos Novos (no Planalto Serrano Central), Caçador e Cruzeiro (no Vale do Rio do Peixe) e Concórdia (no Alto Uruguai). O processo de colonização, iniciado há cerca de vinte anos antes, estava em adiantado estágio e estes municípios, além de abrigarem as respectivas sedes municipais, contemplavam a existência de dezenas de distritos, formados a partir dos núcleos coloniais pioneiros.
Se o grande número de imigrados, que povoavam as zonas do Alto Uruguai e do Vale do Rio do Peixe, eram oriundos do Rio Grande do Sul, no Planalto Norte a imigração registrava muitas pessoas vindas das colônias do Paraná e do Nordeste de Santa Catarina. Já a região de campos, estruturada em latifúndios, voltados à criação de gado bovino, quase não recebia imigrantes, com exceção da zona ocidental de Campos Novos, margeada pelo Rio do Peixe.
Ao contrário da primeira impressão que se tem, quando se fala de “colonização”, uma boa parcela dos imigrantes não eram “colonos”, ou seja, agricultores, e sim, profissionais liberais, como médicos, advogados, farmacêuticos e engenheiros, mais praticantes de diversos “ofícios” (ou profissões da área dos serviços), comerciantes lojistas, hoteleiros e pequenos industriais. Os povoados, as vilas e as cidades cresciam na medida em que a nova população se instalava e seus estabelecimentos econômicos prosperavam, geralmente dispondo de produtivas “linhas coloniais”.
No início, para suprir suas necessidades, além do aproveitamento da primitiva produção, destinada para consumo próprio, o Alto Uruguai e o Vale do Rio do Peixe abasteciam-se de produtos que vinham de trem, de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul, ou, via rodoviária, das cidades do Norte e Noroeste do Rio Grande do Sul, atravessando o leito do Rio Uruguai. Com o passar dos anos, imigrantes italianos, alemães e poloneses (que constituíam a maioria), ao lado de alguns caboclos, mais evoluídos, começaram a montar estabelecimentos voltados à indústria de transformação e de serviços acessórios à indústria.
Foi na década de 1930, que começaram a surgir os primeiros estabelecimentos da ainda incipiente indústria de transformação, ou “indústria fabril”, como era chamada, praticamente a partir da produção colonial regional. Estes revelavam-se geralmente como moinhos coloniais (de cereais), torrefações de café, fábricas de vinhos, cervejas, gasosas e licores, charqueadas, frigoríficos e fábricas de banha e lingüiças, olarias para a fabricação de telhas e tijolos de barro, curtumes, fábricas de queijos e manteigas, fábricas de carroças, de correias, de cola, de ladrilhos e panificadoras. Imigrantes mais abastados desenvolviam também, de forma associada e complementar, atividades de comércio, varejista e atacadista, assim sugerindo aglomerados que, mais tarde, avançariam em movimento e se transformariam em notáveis empreendimentos.
Rapidamente, a produção agrícola regional começou a ser beneficiada. Da Produção animal, faziam-se: banha de porco, cera de abelha, couros secos e salgados de bovinos, charque, lã, leite, manteiga, mel de abelha, ovos, peles de caprinos, requeijões, sebo, solas, toucinhos, chouriços, lingüiças e salames e, ainda, eram aproveitadas as crinas, penas e plumas. Da produção agrícola, além de bebidas, vinagres, faziam-se: fumos em cordas e rolos, polvilhos, farinhas de centeio, de mandioca, de milho e de trigo. Lembramos a erva-mate, que se constituía num dos principais produtos regionais, tanto para consumo local como para exportação, que era preparada em engenhos caseiros e semi-industriais.
9.6.1 Indústria madeireira
O “ofício de serrar árvores” de ontem – a “indústria da madeira” de hoje – já estava presente na Região do Contestado no final do Século XIX, representado por alguns engenhos-de-serra, rudimentares aparelhos movidos a água que, instalados em fazendas, produziam melhores peças do que as vigas, tábuas, ripas e tabuinhas até então obtidas manualmente por simples clivagem. O processamento de madeiras em larga escala iniciou-se, aqui, com a introdução da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, em Calmon (1908) e, imediatamente a seguir, em Três Barras (1912), com o acionamento das serras movidas a vapor.
Com os planos de colonização da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a contar de 1917, começaram a chegar à região cada vez mais levas de imigrantes e, com eles, os primeiros empresários da indústria, apostando no lucro com a extração e serra das exuberantes árvores que formavam o complexo da cobertura vegetal da Floresta da Araucária. Como a atividade só era viável onde houvesse meios de transporte para o pronto escoamento da produção de madeiras, na década de 1920, as primeiras serrarias localizaram-se no interior dos pinhais e o mais próximo possível das estações ferroviárias.
No decorrer dos anos de 1930-1950, a indústria madeireira expandiu-se vertiginosamente, constituindo a principal atividade econômica do Alto Vale do Rio do Peixe e do Planalto Norte Catarinense. Foi o tempo em que Caçador ficou conhecida como “Capital da Madeira” e em que a Rede de Viação Paraná-Santa Catarina - RVSPSC, autarquia federal resultante da encampação e transformação da antiga EFSPRG, obtinha desta atividade mais de 80% das suas receitas com o transporte de cargas na região, onde as estações de Caçador, Canoinhas e Três Barras destacavam-se nos volumes de embarques de madeira serrada.
Na medida em que mais e mais imigrantes chegavam ao Contestado, a par da produção agrícola e pecuária, outras atividades industriais também despontaram nos núcleos coloniais, nas vilas e nas cidades, principalmente no Médio e Baixo Vale do Rio do Peixe, no Alto Uruguai e no Vale do Iguaçu, como os gêneros industriais de alimentos e de bebidas. Entretanto, a industrialização da madeira bruta manteve a primazia em importância econômica na região, adicionada pela indústria do beneficiamento, até entrar em declínio, a partir dos anos de 1960 em algumas áreas e, de 1970 em outras.
Ainda alguns anos antes de iniciar o declínio da produção nos eixos tradicionais, pelo esgotamento das reservas naturais de pinheiros, houve incremento na produção madeireira nos Campos de Curitibanos, área de extração e serra de pinheiros favorecida pela introdução dos caminhões e pelos melhoramentos nas vias rodoviárias que a ligavam aos portos marítimos e aos principais centros consumidores do País.
A desenfreada corrida às milhões de araucárias, às imbuias, aos cedros e às canelas, desde 1920, sem as mínimas intenções de reposição arbórea, fez com que, entre 1980 e 1990, praticamente se encerrasse o ciclo produtivo de madeiras à base do pinho brasileiro em toda a Região do Contestado, onde somente sobreviveram os empreendimentos que, diante da escassez de matéria-prima, em tempo hábil, providenciaram reflorestamentos, utilizando espécies exóticas, bem como aqueles que partiram para a agregação de valores, abrindo o leque produtivo para a fabricação de pasta mecânica, celulose, papel, papelão, móveis, esquadrias, assoalhos, forros, palitos, cabos, caixas e outros derivados.
9.7 Comércio e Serviços
As atividades econômicas genericamente enquadradas como “comerciais”, no final da década dos anos de 1930, dividiam-se em: casas de secos e molhados, casas de gêneros alimentícios, casas de fazendas e armarinhos, relojoarias e joalherias, farmácias, bar e bilhares, botequins, sorveterias, papelarias e livrarias, açougues, agências de automóveis, bicicletas e motocicletas e ateliers fotográficos.
No setor lojista, havia o destaque para os mercadores e mascates, muito representados pelos “turcos”, como eram chamados os imigrantes sírio-libaneses que, adentrando pelos trens da estrada-de-ferro, traziam mercadorias de São Paulo, Ponta Grossa e Curitiba, principalmente, para vender nas comunidades. Ainda no final da década dos anos de 1920, alguns destes descendentes de árabes instalaram-se com lojas (que vendiam de tudo um pouco) próprias nas cidades da região, como em Mafra, Canoinhas, Porto União e Caçador, constituindo-se nos seus principais comerciantes. A conhecida “colônia árabe” também atraiu “patrícios” que, a partir da década de 1930, investiram em estabelecimentos industriais e de serviços.
Dentro da área dos “serviços”, enquadravam-se: transporte rodoviário de cargas e de passageiros, caixeiros despachantes, hotéis, dormitórios, pensões, selarias, restaurantes, agências e correspondentes bancários, oficinas mecânicas, sapatarias, funilarias, ferrarias, alfaiatarias, barbearias, tinturarias e lavanderias.
9.8 População
Cada município evoluiu, no decorrer do tempo, de acordo com seus próprios fatores sociais, culturais, políticos e econômicos, que marcaram o desenvolvimento interno.
No período de 30 anos, compreendido entre 1920 e 1950, enquanto o Estado de Santa Catarina apresentou um crescimento populacional de 135%, passando de 668.791 para 1.562.862 habitantes, na Região do Contestado o aumento populacional foi de 320%, ou seja, quase 2,5 vezes superior, saltando de 93.328 (em sete municípios) para 390.373 habitantes, distribuídos em 15 municípios. Este fenômeno temporal explica-se pela coincidência entre a redução da imigração européia nas colônias da Serra-Abaixo e o período do auge da colonização por rio-grandenses em alguns dos municípios na Região do Contestado.
Na década de 1940, a região apresentava-se dividida em quatro zonas fisiográficas: a denominada de “Campos de Curitibanos”, reunia Curitibanos e Campos Novos, com 15,97% da população; a do “Rio do Peixe” compreendia Caçador, Videira, Tangará, Joaçaba, Herval d’Oeste, Capinzal e Piratuba, reunindo 40,67% dos habitantes da região; a do “Alto Uruguai” compreendia apenas Concórdia, com 12,30%; e a do “Planalto Norte” reunia Mafra, Itaiópolis, Papanduva, Canoinhas e Porto União, com 31,06% da população.
O maior índice de crescimento populacional entre 1920 e 1950 foi, portanto, nos municípios criados ao longo das margens do Rio do Peixe, que saíram praticamente de zero na Guerra do Contestado, registrando 13.335 habitantes em 1920 e 158.786 em 1950.
Panorama da População dos Municípios da Região do Contestado
com base nos dados do Recenseamento Geral de 1920 e 1950
Município População População
da Região em 1920 em 1950
Curitibanos 12.673 32.597
Campos Novos 16.938 29.731
Canoinhas 20.801 36.594
Mafra 10.845 25.472
Porto União 12.068 24.601
Itaiópolis 6.668 18.616
Joaçaba 13.335 48.299
Concórdia - 48.014
Caçador - 23.723
Videira - 23.625
Capinzal - 13.935
Tangará - 13.359
Piratuba - 12.620
Papanduva - 15.962
Herval d’Oeste - 7.263
TOTAL 93.328 390.373
TOTAL SC 668.791 1.562.862
Fontes: IBGE, Recenseamento Geral de 1920 e de 1950, apud IBGE, 1960
PIAZZA, 1983:602-603.
Com relação à população dos municípios da Região do Contestado, em 1955, já em número de 15 (com a criação de Papanduva e Herval d’Oeste), dispomos igualmente dos números do Recenseamento Geral do IBGE de 1950. Da população total de cada um, destacamos o número de habitantes nas sedes distritais e municipais (população urbana e suburbana) e na zona rural. Já a densidade demográfica mostra que os municípios com maiores áreas de criação de gado, Curitibanos, Campos Novos e Porto União (este incluindo os Campos de São João), eram os mais despovoados, enquanto que o índice era muitas vezes maior nos municípios em que houve a colonização com imigrantes.
Somando 30,80% da área geográfica estadual, a região possuía apenas 24,97% da população. A distribuição dos habitantes, aqui, era de 16,87% nas sedes de vilas e cidades (no Estado era 23,36%) e de 83,13% no meio rural (no Estado a média era 76,64%). Mafra e Caçador eram os únicos com mais de 30% da população residente em quadros urbanos. Pelo quadro acima, também temos que a densidade demográfica na Região da Contestado (13,5 habitantes por km²) estava abaixo da média do Estado (16,6 km²/hab.).
Panorama dos Municípios da Região do Contestado em 1955,
com base nos dados do Recenseamento Geral de 1950
Município Área Densidade População População População
da Região Km² Hab./Km² Total Urbana Rural
Curitibanos 5.250 6,208 32.597 3.181 29.416
Campos Novos 3.080 9,553 29.731 3.326 26.405
Canoinhas 3.018 17,414 36.594 9.034 27.560
Mafra 1.594 15,980 25.472 9.242 16.230
Porto União 2.588 9,506 24.601 7.180 17.421
Itaiópolis 2.077 8,963 18.616 1.121 17.495
Joaçaba 4.238 11,397 48.299 9.211 39.088
Concórdia 1.456 32,977 48.014 3.742 44.272
Caçador 1.484 15,986 23.723 8.032 15.691
Videira 938 25,186 23.625 4.569 19.056
Capinzal 694 20,079 13.935 1.868 12.067
Tangará 631 21,171 13.359 1.966 11.393
Piratuba 386 32,694 12.620 1.790 10.830
Papanduva 1.203 13,268 15.962 936 15.026
Herval d’Oeste 273 26,604 7.263 667 6.596
TOTAL 28.910 13,50 390.373 65.865 324.508
TOTAL SC 93.849 16,65 1.562.862 365.077 1.197.785
Fonte: IBGE, Recenseamento Geral de 1950, apud IBGE, 1960
9.9 Ruptura e Transição
Dessa forma, o movimento histórico do capital na Região do Contestado revela uma política econômico-social coerente com o Estado intervencionista associado aos grupos monopólicos estrangeiros; revela a ruptura nos costumes e na forma de viver e trabalhar da população; revela, ainda, a transição de uma época de poucas escolas e de formação de homem para uma política educacional de atendimento à população, já na época da colonização em marcha.
Em meio à crise causada pelo impacto do estado, do capital e dos problemas econômicos, o homem do Contestado provocou comportamentos de reação. Uma análise histórica revela que a reação dos caboclos espoliados baseou-se num saudosismo transfigurador, uma utopia retroativa. Tratou-se de uma valorização do passado, em que não havia exploração e expropriação: a época monárquica, idealizada pelos caboclos como uma época em que não havia mortes e violências; correlata vai a idéia de que a República trouxe o Estado opressor. Uma segunda reação fundou-se na experiência de luta, tirada do passado, como por exemplo, a formação dos Doze Pares de França e São Sebastião guerreiro. A terceira reação assentou-se numa cimentação religiosa: os monges e sua religiosidade popular. No entanto, as causas da reação foram a exploração e a espoliação do espaço caboclo pelo grupo monopólico associado ao Estado.
Escapou ao homem do Contestado a obtenção dos alimentos – coleta, caça e pesca; agora, tudo virou mercadoria. Passou-se de uma economia quase auto-suficiente do caboclo e, também, do fazendeiro para o âmbito da economia capitalista. Nesta nova situação, o homem do Contestado, sem poder persistir na sua economia de níveis mínimos, tem que comprar todos os seus víveres, alterando substancialmente sua dieta. Tem que comprar, igualmente, a sua educação escolar. Em conclusão, ele consegue persistir, em alguns aspectos de seu equipamento cultural – incluídas a educação (para os fazendeiros) e a formação (para os caboclos) – e das formas sociais, oriundas de período anterior. O outro fato é que vive formações novas, oriundas do impacto do mercado que abateu todas as estruturas velhas. O mercado realizou a incorporação progressiva da população na esfera moderna, dominada pela propriedade, pelas leis do estado, presentes por toda a região, pela introdução do trabalho assalariado e pela maior dependência em relação aos centros urbanos.
A revolução de 30 assinala a transição para uma época na qual se dinamizam processos econômicos, políticos, culturais, demográficos e outros tais, como os seguintes: industrialização, urbanização, sindicalismo estatal, intervencionismo governamental crescente na economia, fortalecimento do aparato estatal, principalmente do executivo. Devido à “nova” configuração das classes sociais urbanas e às suas relações de força, o Estado começa a expressar um novo arranjo de classes: burguesia cafeereira, comercial, industrial e imperialista, em associação com setores da classe média e operários (IANNI, 1984, p. 16).