Os Luteranos no Brasil
René E. Gertz
Os historiadores apontam para a presença dos primeiros protestantes no Brasil a partir de 1555, com as invasões francesas. No século XVII retornaram com os holandeses, mas nenhuma dessas duas vindas deixou marcas significativas. Se abstrairmos das formas de religiosidade indígena e das religiões africanas entradas com os escravos, o Brasil colonial desenvolveu-se, do ponto de vista religioso, como essencialmente católico.
O primeiro grupo mais expressivo de protestantes a entrar no Brasil e estabelecer-se em definitivo foi o dos luteranos, que, a partir de 1819, e em especial depois de 1824, vieram como imigrantes alemães.
Sempre representaram, porém, uma minoria absoluta dentro da sociedade brasileira, e assim continua até hoje. Há dados que apontam para 1.300.000 na atualidade. Mas esse número, provavelmente, é exagerado.
O luteranismo está dividido em duas igrejas, e a maior delas, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), algumas vezes é apresentada como composta por 1.000.000, e até por 1.200.000 membros, e a outra, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), apresenta em seu site na internet o número de 217.645 membros. Com isso, se chegaria a, no mínimo, 1.200.000, mas a IECLB realizou há alguns anos um censo, e só conseguiu localizar, de fato, algo como 700.000 membros. Por isso, deve-se partir do pressuposto de que existem hoje no Brasil não mais de 1.000.000 de luteranos.
O censo demográfico realizado pelo IBGE no ano 2000 indica para o Brasil um total de 170.000.000 habitantes. Os luteranos representariam, assim, apenas 0,58% da população brasileira. Mas eles não só constituem um percentual muito baixo em relação ao total da população: também entre os próprios protestantes brasileiros eles são uma minoria.
Admitido que haja em torno de 23.000.000 de protestantes no país, perfariam apenas 4,3% desse total. Às vezes, porém, informações veiculadas pela imprensa dão a impressão de que sua importância sociocultural, e até política, é proporcionalmente bem maior do que sua participação percentual na população.
Segundo dados levantados em 2000, a quarta universidade entre todas as universidades brasileiras em termos de número de alunos (e a terceira entre as particulares) chama-se Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), cuja mantenedora é uma comunidade ligada à IELB.
O primeiro curso de pós-graduação em Teologia reconhecido pela CAPES foi o da Escola Superior de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, que na avaliação de 2001 obteve nota 7, colocando-se entre os 48 (de um total de 1.544) cursos/programas com essa nota, única nota máxima nas áreas de Teologia/Filosofia.
Um levantamento realizado em 1998 mostrou que um oitavo de todos os secretários de educação dos municípios sul-rio-grandenses eram ex-alunos de uma única escola de formação de professores da IECLB, em Ivoti, RS. Quando a Folha de São Paulo festejou seu 80º aniversário, em fevereiro de 2001, foram convidados representantes dos mais diferentes grupos religiosos existentes no Brasil - como representante do protestantismo foi convidado um pastor luterano.
Num programa Roda viva, da TV Cultura de São Paulo, no qual foi entrevistado o sociólogo José de Souza Martins a respeito da questão agrária no Brasil, ele, ao falar das instâncias envolvidas no processo de reforma agrária, citou o governo, o MST, os católicos e, em quarto lugar, os luteranos.
Em todos esses casos, deve-se levar em conta que a aparente importância deriva provavelmente mais da projeção e da qualidade das respectivas instituições - e eventualmente de algumas lideranças - do que dos luteranos como um grupo específico da sociedade brasileira.
Cidadãos confrontados com sua “luteranidade”, muitas vezes a depreciam muito mais do que destacam. Quando, em 1983, foi festejado o 500º aniversário de Lutero, também a imprensa brasileira dedicou algum espaço ao tema. A revista Isto É, depois de falar do reformador, voltou-se para os luteranos no Brasil.
Líderes eclesiásticos, naturalmente, deram destaque à sua atuação e aos projetos de expansão de suas igrejas, mas os demais luteranos entrevistados tentaram antes minimizar a importância de seu pertencimento a essa confissão religiosa.
O deputado federal sul-rio-grandense Siegfried Immanuel Heuser afirmou que, de forma alguma, devia sua eleição aos fiéis luteranos, mas sim a um eleitorado neutro do ponto de vista religioso; sobre o então já ex-presidente Ernesto Geisel, o texto redacional disse que se tratava de uma figura de luterano clássico; ele próprio, porém, destacou que nunca foi um luterano militante, a ponto de nem ter sido confirmado; a ex-Miss Brasil Vera Fischer, questionada sobre sua condição de luterana, respondeu que não se lembrava, em absoluto, se alguma vez militara na Juventude Evangélica - na qual, efetivamente, militou.
Talvez essa ambivalência reflita a ambivalência do próprio protestantismo em terras latino-americanas. No século XIX, muitos esperavam do protestantismo que ele, junto com outras forças progressistas, agisse como antídoto ao conservantismo do catolicismo.
O sociólogo Emílio Willems defendia essa idéia ainda na década de 1960, e Samuel Huntington certamente continua a defendê-la ainda hoje. Em contrapartida, outros autores apresentam o protestantismo latino-americano como colaborador do imperialismo e até de responsável pela tortura sob os regimes militares das últimas décadas.
Existe um bom número de estudos sobre as instituições eclesiásticas luteranas no Brasil, mas, como apontou um jovem antropólogo alguns anos atrás, os cientistas sociais brasileiros fizeram muitos estudos sobre adeptos de cultos africanos, sobre católicos, sobre protestantes pentecostais, mas quase nada se escreveu sobre luteranos.
A única exceção é o grande interesse antropológico demonstrado para com os luteranos de origem pomerana, em especial os do Estado do Espírito Santo. A razão desse interesse talvez possa ser entendida a partir de uma reportagem da revista Veja em 1994. O título já diz mais ou menos tudo: Gente de outro mundo: descendentes de pomeranos vivem no Espírito Santo como se estivessem na Europa do século passado. Na matéria jornalística, esses seres são assim descritos: “Eles falam pomerânio, um dialeto alemão, constroem casas em estilo renano e frequentam cultos luteranos”. “Nos cultos luteranos, freqüentados por todos, a igreja é dividida: homens sentam-se à direita e mulheres à esquerda. Se uma mulher chegar à igreja quando a ala feminina estiver completa, terá de assistir ao culto em pé, mesmo que haja vagas no setor masculino”. “Provavelmente não existe ninguém que se pareça com eles em todo o mundo”.
A listagem bibliográfica apresentada pela antropóloga Joana Bahia em sua recente tese de doutorado sobre esse tema mostra que há, efetivamente, um grande número de escritos acadêmicos e extraacadêmicos sobre o assunto. Nesse caso, porém, o interesse não deriva tanto do fato de que essas pessoas sejam luteranas, mas muito mais do fato de que são pomeranos e luteranos.
Diante dessa situação, pretende-se fazer aqui uma tentativa de sistematizar algumas informações básicas sobre os luteranos brasileiros. É evidente que nem sempre é fácil separar as informações sobre os luteranos das instituições religiosas luteranas, mas o esforço vai no sentido de ver o luteranismo antes como o conjunto de membros mais ou menos anônimos do que de lideranças religiosas ou instituições eclesiásticas.
1) Na história das confissões protestantes no Brasil a historiografia costuma distinguir três tipos de protestantismo: protestantismo de imigração, protestantismo de missão e protestantismo pentecostal. Apesar de que a ala do luteranismo que hoje constitui a Igreja Evangélica Luterana do Brasil tenha sua origem na atuação de missionários norteamericanos,
que desde o início do século XX sempre de novo enfatizaram que sua atuação nunca visou especificamente à população de origem alemã, chegando, inclusive, a ter comunidades constituídas exclusivamente por afro-brasileiros - a verdade é que o luteranismo, como um todo, continua a caracterizar-se, até hoje, por membros de sobrenome alemão.
Na falta de dados estatísticos sobre a origem étnica dos membros das comunidades luteranas, não parece equivocado recorrer aos sobrenomes dos pastores para ter-se uma idéia da composição étnica do conjunto dos luteranos, pois os pastores são recrutados nas comunidades e, por isso, certamente refletem mais ou menos sua composição efetiva. Assim,
dos 657 pastores e pastoras ativos no segundo semestre de 2000 na IECLB, 609 tinham sobrenomes alemães, isto é, aproximadamente 93%.
Entre os de sobrenome não-alemão há alguns espanhóis e japoneses, indicando que se trata de pastores de outros países latino-americanos e do Japão, que podem estar atuando em regime de intercâmbio. A IELB indica em seu site que possui 524 pastores ativos, apresenta, porém, uma lista de 691 nomes, o que, provavelmente, significa que a lista inclui pastores aposentados e licenciados. Em todo caso, dentre esses 691 nomes há 612 de origem alemã, o que representa um percentual de 88,5%.
Nesse sentido, deve-se chamar a atenção para o fato de que para a opinião pública brasileira, e também para muitos cientistas sociais, as comunidades de origem alemã em geral, e sobretudo as luteranas, se caracterizariam pelo profundo isolamento. Em uma pesquisa realizada no início dos anos 1960, sob orientação de Darcy Ribeiro, a respeito de uma comunidade rural no interior de Santa Catarina, lê-se: “a Comunidade Evangélica, sempre reunindo um grupo de origem alemã, constitui um dos fatores que mais se opõem à assimilação dos seus elementos à sociedade brasileira”.
Tais citações poderiam ser multiplicadas às centenas. Interessante, porém, é que a autora escreve algumas linhas depois: “as relações entre católicos e protestantes são dirigidas por uma tradição que sublinha ao máximo o seu caráter amistoso e auxílio mútuo”. Assim, a metade das crianças do jardim de infância protestante seria católica, apesar de que estes só constituiriam 29% da população.
Seria interessante realizar uma pesquisa mais detalhada sobre essa aparente contradição, pois, ou a opinião pública, e muitos cientistas sociais, não têm razão, ou então efetivamente a solidariedade étnica entre os descendentes de alemães é tão forte que se sobrepõem a eventuais clivagens religiosas, como mostraria o exemplo acima.
2) A Constituição monárquica do Brasil garantia a liberdade de consciência e, portanto, a liberdade de confessar uma religião nãocatólica. Havia, porém, ao mesmo tempo, restrições ao exercício do culto e também da cidadania plena para os não-católicos. Se a gente levar em consideração que os luteranos viveram durante 55 anos sob esse regime de restrições (1824-1889), causa alguma estranheza que não haja registros de adesões maciças ao catolicismo. Pois, deve-se destacar que nas mesmas regiões em que habitavam, em geral, existia um catolicismo étnico alemão, de forma que a adesão a ele não traria maior prejuízo à identidade
étnica.
Mesmo que não tenhamos dados quantitativos confiáveis sobre o século XIX, números do século XX mostram que o percentual da população luterana sobre o conjunto da população no sul do Brasil se manteve dentro dos padrões de crescimento vegetativo. Dados sobre o Rio Grande do Sul, por exemplo, indicam o seguinte: em 1900 2,6% da população eram luteranos, em 1930 5,5%, 6% em 1956 e 5,8% em 1966.
Assim, temos o seguinte dado interessante: mesmo que uma parte muito grande de luteranos dos séculos XIX e XX não tenha sido de adeptos fanáticos de sua confissão religiosa, e especialmente da instituição igreja - como se tentará mostrar no próximo ponto - constitui um
fenômeno interessante o fato de que não tenham aberto mão de sua religiosidade específica, mesmo sob condições adversas.
3) Organizações eclesiásticas luteranas, na forma de “sínodos”, são um fenômeno da época da virada do século XIX para o XX – quando os luteranos já se encontravam havia mais de 60 anos no país. Em 1886 foi criado o primeiro sínodo, que no decorrer do tempo se mostraria como o mais importante, o Sínodo Riograndense, ao qual se seguiram até cerca de 1910 sínodos semelhantes em outros estados.
Mas o historiador Martin Dreher escreve que, até a Primeira Guerra, esse sínodo não foi muito mais do que “uma associação de comunidades (talvez fosse mais correto dizer: pastores) que lutava por conseguir a confiança das (outras) comunidades (pastores)”. Essa constatação reflete a tendência generalizada dos luteranos de organizar-se em comunidades autônomas, renegando, conscientemente, a organização em instâncias eclesiásticas mais amplas.
A resistência contra organizações eclesiásticas abrangentes é uma característica que é citada em todos os lugares em que se estabeleceram luteranos. A emigração para o Brasil foi vista, pela maioria dos emigrantes alemães, como uma libertação das imposições sociais e políticas, mas também das religiosas. São abundantes as manifestações de que não se desejava submeter-se a um pastorado imposto de fora, por uma autoridade eclesiástica, por exemplo.
Essa atitude teve efeitos duradouros na história dos luteranos no Brasil. Por isso, a distância entre aquilo que pastores diziam e faziam e aquilo que os membros diziam e faziam foi um reflexo das tendências autonomistas. O Sínodo Riograndense, durante muito tempo, foi obra de pastores, e não de membros. E a resistência contra essa organização pode ser medida pelo fato de que até a década de 1960 um número considerável de luteranos do Rio Grande do Sul vivia em “comunidades livres”.
Nessa época, muitas vezes já eram atendidas por pastores regularmente formados, mas instituídos pela comunidade e a ela subordinados.
Havia, portanto, entre os luteranos uma forte tradição antieclesiástica. Do ano de 1899 ficou registrada uma observação de Candelária, interior do Rio Grande do Sul, que diz: “Nós não queremos ser comandados nem receber lições (de pastores). Não é por isso que viemos para o Brasil! Isso se pode ter na Alemanha! Aqui é o país da liberdade!
Ninguém precisa dar ouvidos (a um pastor)!”. Só por isso, certamente, seria mais interessante estudar os luteranos do que as organizações eclesiásticas luteranas - o que, porém, até hoje não aconteceu.
4) Do ponto de vista social, deve-se distinguir, num primeiro momento, de forma clara, entre os luteranos que vieram ao Brasil como produto da revolução industrial na Europa, e que se estabeleceram como pequenos proprietários rurais, por um lado, e os assim chamados luteranos urbanos, por outro.
Os primeiros constituíram durante todo o período que vai dos anos 1820 aos 1930 a grande maioria. Morando em comunidades homogêneas ou também mistas do ponto de vista religioso, não abandonaram sua fé luterana, como foi mostrado, mesmo que, em geral, de forma alguma tenham sido entusiastas de organizações eclesiásticas.
Organizavam suas comunidades e escolhiam um dentre eles como pastor, o qual mais tarde foi chamado de “pseudo-pastor” por pastores com formação teológica e ordenação - a história eclesiástica mais recente fala de “pastores-colonos”. Além da realização dos ofícios religiosos
tradicionais (batizados, casamentos, enterros), essas comunidades exerciam um papel muito importante na alfabetização das crianças, tarefa que, muitas vezes, também era atribuída ao “pastor”.
O destaque a esse aspecto das comunidades da época é muito importante, pois a partir dessas precárias escolas desenvolveu-se um sistema escolar que foi “nacionalizado” na Segunda Guerra, mas deu origem a uma arraigada cultura escolar, cujos efeitos são sentidos até hoje. Muitas dessas comunidades apresentam os mais baixos índices de analfabetismo do Brasil.
Na outra extremidade da pirâmide social encontravam-se aqueles luteranos que se estabeleceram nas cidades maiores, a partir de 1850. Tratava-se, em geral, de pessoas econômica e intelectualmente melhor posicionadas, que, em muitos casos, haviam participado dos movimentos políticos de 1848 na Alemanha.
Eram jovens que procuraram fazer a vida no Brasil e que, durante a segunda metade do século XIX, exerceram um papel muito importante como jornalistas, políticos, professores, isto é, como intelectuais, e ainda como empresários. Também eles se caracterizaram por não aderir sem mais nem menos ao catolicismo, mas estavam, igualmente, longe de ser luteranos piedosos. Sobre a comunidade de Porto Alegre, um pastor escreveu, no século XIX, que ela se compunha de ricos comerciantes e artesãos, que sem muita insistência se dispunham a contribuir para a manutenção da igreja.
Na sua chegada, teriam, imediatamente, reunido dinheiro para embelezar o templo, mas do reino de Deus não queriam saber. No primeiro parágrafo dos estatutos da comunidade estaria escrito que ela é “evangélica, protestante, de livre religiosidade”. A coisa mais impressionante
na vida da comunidade seriam as festas, que seriam verdadeiras “farras”. Isso significa que a comunidade tinha uma função, sobretudo, recreativa.
Sobre os anos 1920, diz-se que a comunidade se compunha de uma “boa classe média” (comerciantes, profissionais liberais, acadêmicos e técnicos). E mesmo que se fale de uma mudança na estrutura social dessa comunidade nas décadas seguintes, um visitante norte-americano dos anos 1950 escreveu que ela representava antes um centro de “protestantismo
cultural” do que de uma efetiva fé evangélica.
Da comunidade do Rio de Janeiro, sabe-se que um cônsul, bem como outros elementos da elite econômica e social, foram os fundadores. Em um escrito comemorativo do centenário da fundação, em 1927, um pastor escreveu: “Se antigamente o pertencimento consciente à comunidade constituía um problema, não representando mais do que o pagamento das mensalidades e o convite ao pastor para as cerimônias tradicionais, e se apenas uma parcela muito pequena constituía presença fiel nos cultos, a coisa, hoje, ficou muito pior”.
O sociólogo Emílio Willems cita um pastor que fala de concubinatos, incestos e outras grandes irregularidades, que se manifestariam por ocasião de batizados, confirmações e casamentos. Há alguns anos, o antropólogo Guilherme Otávio Velho se filiou à comunidade. Certo tempo
depois, manifestou seu mal-estar, na qualidade de membro, pois lhe faltaria totalmente qualquer base popular.
Sobre a comunidade de São Paulo, Willems nos fornece alguns dados interessantes. No ano de 1905, viviam na cidade entre 3.000 a 4.000 mil luteranos alemães ou de origem alemã, mas a comunidade só tinha 61 membros inscritos.
Em 1928, essa relação estava na proporção de 20.000/800. Em 1934, uma multidão de 24.000 “alemães” teria comparecido a uma comemoração do 1º de Maio, o culto luterano anunciado em conexão com essa festividade, porém, teria sido cancelado por total falta de interessados.
Em Curitiba, desencadeou-se, em 1899, uma briga entre os membros e o pastor, porque este queria ministrar ensino religioso às crianças da escola ligada à comunidade. A absoluta maioria dos membros era contra essa intenção do pastor.
No que tange a essa comunidade, há, além desse, alguns outros dados interessantes. Um levantamento demográfico referente a 3.235 famílias católicas e luteranas da “colônia alemã” de Curitiba, entre 1850 e 1919, mostrou que 704 delas tinham, no mínimo, um de seus membros casado com um membro da outra confissão. Mesmo que a informação não deixe claro se a tendência para “passar para o outro lado” era maior entre católicos ou luteranos, ela mostra que não se levava a religião tão a sério.
Em 1891, a diretoria da comunidade de Florianópolis decidiu que “cada alemão aqui residente pode ser membro da comunidade, independente de sua confissão”. Isso mostra que a comunidade era vista, sobretudo, como uma associação recreativa impregnada do espírito do germanismo, mas era, do ponto de vista social, claramente excludente, em relação a determinados “alemães”.
Assim, em 1915, uma assembléia de todos os membros decidiu que camponeses e empregadas domésticas que transferissem moradia do interior para a cidade não poderiam se admitidos como membros.
Desde aproximadamente 1910, desenvolveu-se no sul do Brasil um processo de industrialização e urbanização, que fez surgir cidades médias nas regiões de colonização alemã. Nessas cidades, surgiu uma nova “classe média”, que se transformou num terceiro componente na composição social do luteranismo.
Na falta de estudos detalhados, só podemos levantar algumas hipóteses sobre as conseqüências do surgimento desse novo estrato. Desde o início dos anos 1960, estudantes universitários luteranos do interior envolveram-se na então muito ativa política estudantil de esquerda, sobretudo em Porto Alegre.
Nesse mesmo período, a Faculdade de Teologia (hoje Escola Superior de Teologia - EST), em São Leopoldo, começou a possibilitar a admissão de egressos de qualquer escola secundária brasileira, quebrando o monopólio do Instituto Pré-Teológico como caminho único para o estudo da Teologia. Esta última escola se caracterizava pelo fato de que possivelmente 90% de seus alunos provinham de famílias camponesas, além de alguns filhos de pastores e professores. O ensino de várias disciplinas era em alemão, de forma que, expressamente ou não, ela se caracterizava por uma certa germanidade.
Com o ingresso na Faculdade de Teologia de estudantes provenientes de outras escolas e pertencentes à citada “classe média”, começaram a aparecer vozes críticas ao excesso de germanidade e reivindicações por uma “brasileirização”, que deveria estender-se para toda a igreja.
Politicamente, isso significou uma inflexão à “esquerda”, e dessa tendência desenvolveu-se depois a Teologia da Libertação, que hoje parece predominar na Escola Superior de Teologia.
Mas, por outro lado, surgiram, provenientes exatamente do mesmo estrato social, movimentos pietistas e fundamentalistas, que tentaram estabelecer conexões com movimentos universitários de universidades leigas, aderindo a um movimento surgido em outras igrejas, que também se espalhou pelas comunidades.
Para os adultos que seguem mais ou menos essa mesma linha, surgiu o movimento “Encontrão”, que, muitas vezes em dias de carnaval, reúne milhares de pessoas, sobretudo casais, onde se celebra a “espiritualidade”. Para os jovens estudantes, e também pastores, adeptos da Teologia da Libertação, que têm seguidores nas comunidades, em contrapartida,
parece muitas vezes que a Teologia se reduziu a uma pura Antropologia, onde praticamente não se fala mais de Deus e de Espiritualidade.
A direção da IECLB - menos a da IELB - pode-se caracterizar, provavelmente, como “progressista”: ela destaca os compromissos sociais e políticos da igreja, assumindo uma posição intermediária e de intermediação. É difícil dizer qual das tendências predomina, hoje, entre os membros das comunidades, mas parece que as tendências conservadoras não podem ser subestimadas, mesmo que no Brasil não tenha ocorrido um cisma, e provavelmente não venha a ocorrer, como ocorreu no Chile após o golpe militar de 1973.
5) Estudos demográficos têm mostrado que os luteranos brasileiros apresentam um comportamento semelhante ao de protestantes em outras partes do mundo no que se refere ao número de filhos, quando comparados aos católicos.
Levantamentos sistemáticos a respeito só existem - pelo que conheço - em relação à comunidade de Curitiba. Ali foi constatado um número superior não explicado de filhos nas famílias luteranas em relação às católicas, até 1894.
A constatação, no entanto, pode derivar de um problema metodológico, pois a partir dessa data os casais luteranos reduziram o número de seus filhos de 6-7 para 4-5, no ano de 1920; e de 1920 até 1939 esse número recuou para 2-3, enquanto o número de filhos dos casais católicos sempre se manteve superior.
Um levantamento do ano de 1966 em uma comunidade totalmente rural no interior do Rio Grande do Sul mostrou que os casais católicos tinham, em média, 5,81 filhos, enquanto os luteranos tinham apenas 4,07. Em um município que apresentava tanto zonas rurais quanto um pequeno centro urbano puderam ser constatadas claras diferenças entre católicos e luteranos em relação ao número de filhos no período anterior a 1930.
6) Mesmo que a famosa tese weberiana sobre a ética protestante se refira concretamente aos calvinistas, a relação entre luteranismo e desenvolvimento econômico no Brasil tem sido aventada. Um estudo sobre Santa Cruz do Sul entre o início da sua colonização na metade do século XIX e 1930 mostrou claramente que os principais empreendimentos estiveram em mãos de luteranos, mesmo que no ponto de partida não tenha sido possível constatar diferenças entre a qualidade da terra e, portanto, a riqueza dos colonos.
Em 1892, havia 14 “indústrias”, das quais 10 pertenciam a luteranos, 3 a católicos, e a filiação religiosa de um dos “industriais” não foi possível estabelecer. Em 1895, 73% da força motriz estava instalada em empresas de luteranos. Em 1902, dos 15 empreendimentos que mais impostos pagavam, 12 estavam em mãos de luteranos.
Uma estatística industrial de 1916 mostrou que 66% do capital investido pertencia a luteranos e apenas 28% a católicos; na mesma época, 73% da produção era creditada a luteranos e só 22% a católicos. A Associação Comercial e Industrial local tinha, em 1924, na sua diretoria, 14 luteranos e 2 católicos.
Um historiador constatou que em Blumenau uma série de iniciativas de caráter econômico muito importantes partiu de luteranos. Foi um luterano que, em 1903, introduziu o primeiro automóvel, um luterano abriu, em 1904, o primeiro cinema, inaugurou em 1907 a estrada de ferro Blumenau-Ibirama - muito importante para a economia local -, criou, em 1909, a Companhia Força e Luz e colocou em funcionamento, em 1935, o primeiro transmissor de rádio.
Além disso, ele cita um historiador local de acordo com cujas pesquisas a maioria absoluta dos comerciantes, em 1920, era composta de luteranos. Os luteranos também se teriam dedicado com muito mais afinco do que os católicos à construção de escolas, assim que teriam sido os
principais portadores de ideais de modernização.
Na União Popular dos católicos de origem alemã do Rio Grande do Sul sempre de novo se fizeram ouvir vozes que lamentavam que os agricultores católicos não conseguiam atingir o mesmo nível de vida que os luteranos.
O principal mentor intelectual da União Popular, padre Teodoro Amstad, escreveu em suas memórias que na colônia confessionalmente mista de Nova Petrópolis os luteranos superavam os católicos “também no concernente à sua colocação social e quanto às posses”. Outros, como o influente jornalista Hugo Metzler, manifestaram-se de forma muito semelhante em relação a todo o interior do Rio Grande do Sul.
Mesmo assim, essa questão não está decidida. Se a tese do protestantismo mostra eficácia para um estudo limitado a Santa Cruz do Sul, ela não se sustenta, sem mais nem menos, numa comparação entre Santa Cruz do Sul e Caxias do Sul, por exemplo.
Caxias do Sul, apesar de sua colonização ter iniciado cerca de 25 anos depois da de Santa Cruz e apesar de ter sido realizada por italianos católicos, e ainda localizar-se em terras menos próprias para a agricultura, teve um crescimento muito mais vertiginoso do que a primeira.
7) A uma maior presença dos luteranos na economia dentro das regiões de colonização alemã, sempre correspondeu uma menor participação na política partidária. Naturalmente, as “condições iniciais”, nesse caso, favoreciam os católicos. Não só o contexto brasileiro mais amplo era católico, mas os luteranos sofriam restrições formais ao exercício da cidadania plena até o fim do Império.
No que tange ao Rio Grande do Sul, havia vários deputados católicos de sobrenome alemão na Assembléia de Representantes, desde o início da República, mas o primeiro luterano (Arno Philipp) só ingressou em 1905. Philipp, no entanto, não era um representante dos luteranos, no sentido de que tivesse sido eleito por eles ou ingressado por sua pressão - ele havia sido convidado por Borges de Medeiros para entrar na lista de candidatos governistas, possivelmente com a finalidade de cooptar a população de confissão luterana.
Nos anos 1930, apareceu outro representante luterano (A. J. Renner), mas este pertencia à “representação profissional”, instituída pela Constituição de 1934. Deputados federais luteranos só foram eleitos no final da década de 1950.
Isso, no entanto, não significa, de forma alguma, que os luteranos tivessem se desinteressado totalmente da administração do aparelho de Estado. Ao nível municipal, pode-se constar, entre o início da República e a Segunda Guerra, sua presença massiva, e muitas vezes dominante. O citado trabalho sobre Santa Cruz do Sul, que mostrou a predominância dos luteranos na economia, também mostrou que os luteranos marcaram, no mínimo, o mesmo nível de presença na política - o que é compreensível, já que dominavam os setores mais importantes da economia.
Talvez se pudesse recorrer a um slogan muito utilizados por Getúlio Vargas, a partir de 1928, quando chegou ao governo do Rio Grande do Sul, dizendo que, possivelmente, os luteranos não se mostravam tão afoitos na política, mas se interessavam muito pela administração eficiente de suas comunas.
A história de São Leopoldo, durante a República Velha, mostra claramente que os luteranos se empenharam muito na luta pelo poder local. Foi interessante constatar que a clivagem política local de todo o período transcorreu ao longo de uma linha religiosa.
De um lado, estavam os luteranos e os maçons - que em grande parte eram luteranos, mas também tinham adeptos entre os católicos - e, de outro, aqueles que se consideravam bons católicos. Além disso, foi interessante constatar que durante a Primeira Guerra os luteranos perderam um pouco de terreno, depois disso, porém, começaram - de forma consciente ou não - a ocupar todos os espaços da sociedade local: a diretoria da Associação Comercial e Industrial, mas também das diretorias dos clubes recreativos, por exemplo. E isso num município em que eles estavam longe de constituir uma maioria esmagadora.
É verdade que os confrontos nunca eram apresentados como confessionais. Mesmo quando se chegava às vias de fato, como no caso do empastelamento da Deutsche Post, em 1928, esses confrontos sempre foram justificados com argumentos nacionalistas, isto é, contra a germanidade e não contra a luteranidade.
Os católicos de fala alemã do Rio Grande do Sul criaram, na segunda década do século XX, uma associação de caráter socioeconômico e religioso nos moldes da União Popular alemã. Antes disso, os luteranos haviam participado de uma associação ecumênica, que foi dissolvida em torno de 1910, mas no final de 1920 foi criada sob sua influência a Liga das Uniões Coloniais.
Como os luteranos, por razões doutrinárias, não aceitavam nem política nem economia luteranas, a Liga, oficialmente, não era confessional ou étnica, como a União Popular, de fato, porém, estava dominada pelos luteranos. Ao contrário da União Popular, a Liga se entendia como sindicato, que barganhava com o Estado, enquanto a outra não se cansava de destacar sua autonomia em relação ao Estado. A Liga, portanto, representava um outro capítulo interessante da luta dos luteranos pela sua cidadania.
Enquanto essas formas de relacionamento com o Estado, muitas vezes, procuravam mostrar uma certa restrição à atividade políticopartidária, as perseguições durante a Segunda Guerra levaram, compreensivelmente, a um certo fortalecimento do luteranismo.
Para Santa Catarina, onde essa campanha foi mais incisiva, os números dos membros do sínodo luterano local mostraram um crescimento de membros de 18% entre 1940 e 1946. No Rio Grande do Sul, foi, pela primeira vez, tentado eleger uma significativa bancada luterana para o parlamento regional, uma tentativa relativamente bem sucedia, pois puderam ser eleitos 7 deputados luteranos de diversos partidos – num total de 55.
Mesmo que não existam pesquisas sobre as eleições seguintes, parece que depois disso se parou, novamente, de fazer política explicitamente luterana, como indicam as citadas manifestações de 1983. Caberia investigar a participação efetiva dos luteranos na política desde então.
Deve-se apontar ainda para um outro aspecto da inserção dos luteranos no aparelho de Estado brasileiro: a participação na luta pela manutenção da laicidade da República brasileira.
Um exemplo: em 1925, por ocasião de uma reforma da Constituição brasileira, foram apresentadas duas emendas que pretendiam favorecer o catolicismo - permitir o ensino religioso nas escolas públicas e declarar o catolicismo como a religião da maioria do povo brasileiro. Em Porto Alegre, criou-se um Comitê Pró-Liberdade de Consciência, que se propôs a lutar contra a aprovação dessas emendas. O Comitê era liderado por positivistas, maçons, espíritas e metodistas.
Mesmo que a direção do Sínodo Riograndense (luterano) se tenha feito apenas representar no Comitê, através de um metodista, e que tenha manifestado sua oposição através de um telegrama ao presidente do Congresso Nacional, é interessante que a Ordem Auxiliadora de Senhoras da comunidade luterana de Pelotas se tenha engajado na luta local contra as emendas e que o intendente luterano de Lajeado tenha feito publicar um manifesto nos jornais de Porto Alegre no mesmo sentido.
Os aspectos destacados em relação aos luteranos no Brasil nos últimos 175 anos não permitem traçar um quadro linear de sua trajetória. Eles - ou parte deles - certamente tiveram um papel modernizador em certos momentos e sob certos pontos de vista, mostraram-se conservadores e mesmo reacionários em outros, contribuíram para a construção de importantes instituições.
Possivelmente não tenham sido muito diferentes do que toda a história do gênero humano: tiveram altos e baixos, avanços e recuos, contribuíram com papéis e obras mais e menos edificantes. - E talvez não tenham sido tão exóticos quanto ainda aparecem hoje para muitos cidadãos brasileiros.