Raymundinho - Um Pioneiro De Maratá

1 - 1921 - Mudança do Rio Grande do Sul para Santa Catarina

 

Partindo, em meados de setembro de 1921, de São Pedro do Maratá, localidade do município de Montenegro, RS foram necessários cinco dias e quatro noites de trem para chegarmos até Nova Galícia, em Porto União, SC.

 

Desembarcamos do trem nessa localidade, para não viajarmos até Porto União, já que da sede do município não havia condições melhores para transportar as mudanças. Vale lembrar que Nova Galícia já era um distrito próspero em 1917, com movimenta estação ferroviária, tanto para transporte de passageiros quanto para cargas. Dispunha de telefone, hotéis, padarias, cartório de registros, etc. Mas com a desativação do movimento de estrada de ferro, hoje este local não passa de uma ruína, vendo-se dezenas de casas de ferroviários desabando, a estação abandonada, sem mais sequer um comércio, apenas um pequeno armazém com botequim e os trilhos servindo apenas para a passagem de um trem, nem sempre diário, transportando pinus para as madeireiras próximas ou areia para as Casas de Materiais de Construção. Nova Galícia só consta ainda no mapa/papel do município.

 

De Nova Galícia até São Miguel havia ao menos uma picada. De São Miguel nos dirigimos até a propriedade do Sr. Hans Match no Tamanduá, pouco antes de São Miguel. Meu pai, Jacó Lerner Sobrinho esteve em São Miguel pela primeira vez em 1919. Somente na segunda viagem para cá chegou até o local que passou a se chamar Nova Maratá, e que, posteriormente foi designado simplesmente Maratá, até os dias hoje, em homenagem às terras de origem da maioria dos moradores.

 

À medida que chegavam os novos compradores de terras abriam, eles mesmos as estradas, no que gastavam sempre de vinte a trinta dias. Construíam também as pontes. Se as águas, eventualmente, as destruíam, em mutirão eram reconstruídas. Hoje a prefeitura constrói pontes e conserva as estradas. Nos primeiros anos da colonização do interior, os próprios moradores tinham que fazer construir tudo o que precisavam.

 

Hoje se os colonos pedem interferência dos vereadores para as obras públicas recebem a resposta: <a Prefeitura que se vire!>... mas nada fazem. Naquele tempo meu pai possuía uma carroça de transporte, trazida do Rio Grande puxada por uma junta de bois e uma parelha de cavalos, por uma estrada aberta pelos colonos até o posto fiscal de Pintado, a alguns quilômetros da cidade. Nós não esperávamos <que a prefeitura se vire!>, mas nós mesmos agíamos.

 

O povo era à época, muito sacrificado, especialmente os colonos que muitas vezes perdiam o ânimo para votar nas eleições. De minha parte, compreendia as dificuldades da prefeitura, já que a arrecadação era pequena. Aliás, Porto União não podia ter progresso porque a cidade era um lamaçal, cheia de atoleiros em qualquer rua e as estradas tinham, por tudo, atoladores e para resolver o problema era preciso cobrar impostos. No ano de 1928 ou 1930 foram cobrados impostos de 22$000 réis por carroça, o que representava muito dinheiro para os pioneiros que vinham praticamente sem nada do Rio Grande.

 

Aos domingos reuniam-se na igreja para discutir os assuntos particulares e gerais. Meu pai era o chefe da turma. -Olha, pai Lerner, temos de pagar 22$000 de imposto da carroça!, comentava-se. Como pai Lemer era muito considerado, foram reclamar com ele sobre a quantia elevada de vinte e dois mil reis, dizendo que haviam trabalhado quinze a vinte dias nas estradas do município. Diziam que assim não podia continuar. Nisso concordou pai Lemer. Argumentava que, sendo trinta e dois os colonos com carroça, a quantia total de 704$000 era muito. Não se podia tirar tanto dinheiro de Maratá. - Primeiro a prefeitura faça alguma coisa por nos. Por enquanto ela só fez a ponte sobre o rio Taquaral, junto à antiga estrada que liga São Miguel a São José do Maratá, em terreno do Sr. Otto Schubert.  Nós de Maratá fizemos a ponte coberta sobre o rio Liso e assim mesmo a prefeitura se negou a ajudar com a ferragem. É o que todos comentavam. Isso desgostou muito os colonos, que resolveram ir até Porto União a cavalo para reclamar com O prefeito, Sr. Helmuth Müller.

 

Combinou-se ir numa quarta-feira. Reuniram-se vinte cavaleiros na primeira quarta-feira seguinte. E pai Lemer disse que conhecia bem o prefeito. É aquele que tem uma torrefação de café. O feijão que tínhamos e que não dava mais para comer nós lá o vendíamos para ser torrado e moído como pó de café...

 

Numa quarta-feira chegaram dois Freysleben que receberam ordem de roçar as beiras das estradas e o pai Lerner estava doente e acamado. Chamou-me e mandou que eu fosse em lugar dele ao Porto, em companhia dos demais colonos, conversar com o prefeito. E eu sabia do que tratar. Fomos até à casa de José Orth, hoje meu sogro que também nos acompanhou. Juntou-se a nós Ernesto Brito. Assim, em cerca de vinte pessoas galopamos até Porto União. E eu, Raymundinho, o <Raymundinho de bata> então um guri (piá) para falar com o prefeito.

 

Na prefeitura recebeu-nos um funcionário que estava sentado sobre um balcão. Indagou o que queríamos. Informado que pretendíamos falar com o prefeito, disse o funcionário que ele estava no gabinete. Anunciado nosso desejo, quis o funcionário de imediato, saber de que se tratava. Em coro respondemos: <nós somos de Maratá!>. Então o Prefeito mandou que entrássemos e nós entramos. Pediu que nos sentássemos e perguntou o que queríamos mesmo. Tomou a palavra um dos mais velhos que disse estarmos ali para falar sobre o imposto de vinte e dois mil réis, que considerávamos demasiado para uma carroça, uma vez que nós fizemos e estamos fazendo as estradas.

Sim, retrucou o prefeito, eu fiz a ponte e vocês de Maratá não se lembram de nada? Então, eu, Raymundinho. disse: - O prefeito mandou fazer só uma ponte! E lembrando-me da ponte sobre o rio Liso, acrescentei: - Mas, prefeito, a ponte maior nós é que a fizemos! E o prefeito também não se lembra de nada! E levantei os dedos polegares e as mãos abertas encostadas no meu peito, pra mostrar que aquilo gabolice da parte dele.

 

Seguiram-se uns oito minutos de silêncio porque o prefeito via que ia dar um arranca-rabo daquele jeito. Então o prefeito irritou-se comigo, fixou os olhos em meus olhos como dois galos de briga. Vieram-me à mente vários pensamentos. Assustado, vi que as coisas haviam piorado para meu lado. Pensei na polícia que estava lá fora, a cadeia lá embaixo, meu pai acamado. Minhas orelhas ficaram quentes e vermelhas de vergonha e medo. Passados os oito minutos de silêncio, ouviu-se um suspiro <de noventa e nove centímetros de comprimento>. E o Rayrnundinho estava livre, mas não ainda dos olhares do prefeito. Disse então o prefeito: vocês vão pagar 11$000 com prazo de três meses! E eu falei logo que de certo meu pai concordaria com isto. Despedimo-nos: - Até outra vista, Senhor prefeito!

 

Eu estava com pressa de sair. Precisava respirar um ar fresco e ir para casa, pois tremia de medo. Um guri como eu era, treme muito fácil. Já na rua, o Sr. Brito me disse: - Mas piá, você soube atirar uma pedrinha bem na cabeça do Senhor prefeito! Claro que eu disse: - Vocês mais velhos não abriram a boca e por isso eu, guri maroto, tive que falar. E agora, o que papai vai dizer? E me sugeriram: Raymundinho você não diga nada para seu pai. E fomos almoçar, mas eu estava sem apetite, porque para mim nada estava bom, porque me lembrava do que tinha feito. Parecia-me que meu procedimento não fora dos melhores. Na verdade eu estava com a consciência pesada. E nem imaginava que José Orth, também presente, ia ficar meu sogro... Eu podia ter perdido a confiança do Orth, né, mas no fim deu tudo certo.

 

Voltamos ao Maratá. Fomos diretos à casa do pai Lerner. Os dois Freysleben entraram também para servir de guarda-costas diante de meu pai, que poderia me surrar pelo que tinha dito ao prefeito. Eles contaram direitinho tudo que acontecera no Porto: e disseram ainda que se não fosse o Raymundinho nada teriam conseguido. Por isso, disseram os dois: - Sr. Lerner, não pode surrar o Raymundinho, porque hoje ele não bancou moleque na prefeitura. O Sr. Lerner é o mais velho da comitiva de Maratá e mandou o Raymundinho em seu lugar. Assim, hoje, ele era o mais velho na prefeitura, representando o homem mais velho de Maratá! Então o pai só disse: - Raymundinho, essas coisas não se fazem! Mas papai ficou satisfeito que foi salvo muito dinheiro dos colonos! Parabéns!

 

Nos tempos antigos, quando tudo era mato e poucos tinham cavalo e não existia ônibus como hoje, havia dois rapazes solteiros com o nome de Manrich: João e José, que moravam nos fundos dos matos de Bom Princípio, iniciando a vida. Muitas vezes fui lá tomar chimarrão no rancho deles. Quando os Manrich queriam ir ao Porto fazer umas comprinhas, em casa eles debulhavam duas quartas de milho (vinte litros) que carregavam nos ombros até o moinho de Rudolfo Becker, localizado atrás do terreno do Sr. José Schorr. De lá iam a pé até o Porto fazer as compras. Quando batia a fome entravam numa padaria para matar a fome. A empregada da padaria trazia dez pãezinhos e uma velha lata de soda cheia de mel. Depois do café perguntavam quanto era o café com a mistura - e a tia da empregada respondia $500 réis! Punham então as compras aos ombros e andavam até o moinho de Rudolfo Becker, onde apanhavam os 20 litros de fubá e, carregando as compras e o fubá nas costas, voltavam até os fundos de Bom Princípio. Tudo feito a pé: uns 30 quilômetros! E veja-se a diferença com hoje, quando se faz a mesma viagem no ônibus de Basílio Reisdorfer! Na hora do almoço a gente vai a uma churrascaria e manda vir um churrasco por uns cinco reais (dinheiro do ano 96) mais uma cerveja por um real e cinqüenta centavos. Para muitos isso não está bom e lamentam terem gasto tudo isto.

 

A colônia São Francisco, ficava na cabeceira de um riacho, chamado Córrego Cerne, perto da propriedade do Sr. Otto Bauermeister. Isto em 1933. Estradas ali não havia. Um moço, o Aloísio Orth, que era para ser genro do papai, comprou terras em São Francisco, bem nos  fundos das terras do pai Lerner. Eram sete pessoas que queriam mudar-se para São Francisco: Pedro Canísio Orth, Aloísio Orth, Emílio Orth, Isidoro Orth, Vidal José Schmitt e José Müller e mais tarde, Theobaldo Raymundo Lerner. Também João Müller ajudou o Sr. José Müller e meu pai ajudou a mim, Raymundo.

 

Meu pai bancava o prefeito, porque ele tinha um trator, a carroça com uma junta de bois bem tratados e mais um bom arado. Raymundo era o tratorista, para com o arado arrancar as raízes dos tocos. Muitas vezes o arado encontrava raízes mais resistentes e quando partiam, batiam nas canelas do Raymundinho... que pulava, gritando de dor: - ai, ai, ai! Saía pulando em saltos de dois metros de altura!... Eram pulos de dor, não de alegria. A estrada nos terrenos de São Francisco atravessa banhados com muitos xaxins. Estes eram cortados e transportados nas costas até as carroças, por uns sete quilômetros, para servir nas cabeceiras das pontes. Pensem um pouco: sete pessoas e sete quilômetros, atravessando o mato! Isto é ter coragem. Sem ajuda da prefeitura.

Entre São José do Maratá e Maratá existe o vale do Rio Bonito. Os moradores de baixo do rio fizeram-nos uma bela surpresa. Reunidos, decidiram fazer uma festa para os colonos sofredores de São Francisco. Convidaram inspetor de quarteirão, Sr. João Fank e o gaiteiro, Sr. José Kalsing, pai do padre Edvino, era correspondente junto aos Metzler de Porto Alegre. Foram pegar-nos no vale do rio Bonito para a festa que nos tinham preparado. Era uma terça-feira de carnaval. Estávamos construindo uma estrada numa subida muito forte. Ainda hoje a subida é conhecida como subida do carnaval.

 

Chegados no local de nosso trabalho, os colonos do vale do Rio Bonito intimaram-nos a deixar o trabalho. Tio Pedro Daubermann pediu que deixássemos as ferramentas no mato. Presentearam-nos com uma música, tocando uma bela marcha. Meu pai, que representava no Maratá o prefeito, estava perplexo com a surpresa. Tio Pedro, cunhado de pai Lerner disse: Vamos junto! Acompanhamos o pessoal ao som da música até a barranca do rio. Lá havia fumaça e as mulheres, em grande movimentação. Um grande tacho de cobre estava cheio de galinhada! Recebemos primeiro um bom trago de cachaça. Foi servida a galinhada e vinho depois nos divertimos muito nesta saudosa noite de carnaval. E a festinha teve a ajuda da prefeitura...?

2 - O Rio Liso. A enchente e a ponte. Antes de 1925

 

Nesta época ainda o progresso não havia chegado a Maratá. Faltavam recursos. Tudo por fazer. Precisava-se ir ao moinho e à serraria em São Miguel. Era necessário atravessar o rio Liso e havia naquele ano, mais ou menos 1925, muitas enchentes. Para atravessar o Liso cortamos um pinheiro bem criado e o colocamos sobre o rio para servir de pinguela. Infelizmente muitos caíram e rodaram rio abaixo. Felizmente também, todos se salvaram. Não houve vítimas de morte, mas muitos sustos!

 

Um dia João Orth, pai depois dos cinco padres: - Frei Joaquim, Frei Gonçalo, Con. Inácio, Mons. Luiz e Padre Canísio e ainda de duas irmãs religiosas, Ir. Teônia, da Div. Providência e mais outra, - e um filho foram até São Miguel para comprar um porco e o trouxeram em carrinho de mão até Maratá, por uns doze quilômetros. Atravessaram o rio Liso. Um puxava e outro empurrava o carrinho. O porco era reprodutor. É que João tinha uma criadeira que precisava de um reprodutor.

 

Corriam sempre as notícias sobre o perigo que oferecia a travessia do rio Liso. Reuniram-se os moradores, por isso, em frente à igreja para discutir o assunto. Perguntaram novamente ao pai Lerner o que pensava sobre o rio Liso. Chovia muito e precisando de farinha, por exemplo, tinham que ir a São Miguel, além do rio, enfrentando sempre as mesmas dificuldades. - Precisamos de uma ponte sobre o Liso, disse pai Lerner. É dos piores problemas que temos por enfrentar - uma ponte assim tão grande.

 

Os moradores ainda eram poucos. Procuraram reunir mais gente para a empreitada. Argumentava alguém que tudo estaria bem até que alguém morresse afogado. Bem, diz Lerner, a ponte deverá ter uns dezoito metros de comprimento. Vou dar um plano. Se vocês todos ajudarem com as forças dos braços e não só com a boca..., e com algumas juntas de bois para transportar xaxim em carroças e até nos braços – da minha parte dou quatro pinheiros escolhidos, que tenham bastante cerne e que não sejam finos. Os vigamentos devem ter trinta por quarenta centímetros e dezoito metros de comprimento. E como iremos conseguir colocar as vigas sobre o rio? Lembrei-me que podemos procurar o Sr. Francisco Belau que é homem muito entendido e técnico em construção de pontes.

 

Assim foi feito. Francisco concordou em ajudar. Construiu-se assim a primeira ponte sobre o rio Liso, Mas, infelizmente, com várias enchentes, a ponte não resistiu e foi carregada rio abaixo. Não havia outro recurso, senão construir outra ponte para Lerner poder transportar em carros de bois, as tabuas de São Miguel a Maratá e o milho e batatinhas a Porto União.

 

Onde se encontra hoje união que importa tanto sacrifício? Naquele tempo quando alguém quisesse construir alguma coisa, derrubava o mato e na queimada plantava milho. Um vizinho ajudava o outro na lavoura. Quando em dezembro o serviço da roça estava pronto, o pessoal entrava e fazia as toras e as falquejavam. Das madeiras mais finas faziam estaleiros para porem as toras falquejadas que eram desdobradas em tábuas, com as serras manuais, ficando um em cima e dois debaixo. Removiam depois as tábuas nos ombros. Os pranchões eram empurrados por cima das árvores derrubadas. De vez em quando se ouvia: - ai, ai, meu dedo! Lá se foi um pedaço de meu couro... Rasgava-se um pedaço de pano de embrulhar a merenda e enliava-se o dedo. Estava feito o curativo. Enquanto uns transportavam as tabuas serradas, outros, no outro lado da roça serravam torinhas de pinho que eram rachadas em lascas de três palmos, uns sessenta centímetros, por um palmo de largura e calculado em quatro tabuinhas partidas e falquejadas. As moças, as crianças e as mães carregavam as tabuinhas para fora da roça.

 

Jacó e Raymundo Lerner transportavam em carroça a madeira serrada até o lugar escolhido para a construção de um paiol para milho ou uma casa. Pronto o paiol, fazia-se um baile. Todos dançavam de tamanco e esqueciam o serviço pesado que haviam enfrentado. Só com união, coragem e trabalho veio o progresso à colônia.

3 - A igreja e a escola

 

Com todas as dificuldades da colônia, como a construção de estradas, casas e pontes, ainda tivemos que construir uma igreja e uma escola. Considerada quase miséria reinante, não era fácil submeter-se a mais este sacrifício. Mas tratava-se de gente de coragem, capaz de esquecer uma refeição entretidos com o trabalho. E estes pioneiros tinham como parte de suas vidas a escola e a igreja. Bem, quando chegamos à colônia de Maratá em 1921, encontramos um rancho, construído em madeira roliça e tábuas, bem em frente da nossa atual igreja, na entrada, do lado esquerdo.

 

Naqueles tempos, chegando a um lugar novo, cortavam-se árvores retas, fazia-se um buraco no chão. Nele era posto um esteio, pisava-se até ficar firme. Nas cabeceiras eram colocadas vigas mestras, compridas, para formar a cumieira e postas às linhas de um pau roliço, o vigamento, como se diz hoje. As casas primitivas não tinham assoalho. Era chão de terra batida. Cobriam-se as casas com tabuinhas lascadas. Numa casa desse tipo funcionava a igreja e a escola. Mas havia muitas goteiras. Em recinto desse tipo se rezava a missa e davam-se as aulas. O Sr. Matias Terlau era o professor. Foi nessa igreja que eu, Raymundinho, fui da primeira turma, umas oito crianças que receberam a primeira comunhão, no dia 23 de abril de 1922.

 

Na verdade era triste ter-se um lugar tão pobre como igreja e escola. Lembro que mamãe se preveniu para os poucos convidados. Cozinhou sopa de canjica e assou bolinhos de fubá para que os convidados e mais alguém que viesse tivessem alguma coisa que comer. E comentavam:- assim não pode continuar! E, com fé em Deus redobraram o trabalho. Fizeram mais roça e, pelo mês de outubro, combinaram fazer uma igreja nova para Nosso Senhor. Todos se encheram de coragem. O velho José Orth era o carpinteiro. Fez o orçamento e veio com a desdobradeira de madeira nova. E, quando as roças estavam queimadas e plantadas, reuniram-se todos e perguntava cada qual, que serviço teria a executar. E combinaram assim, que uns derrubariam as árvores e fariam as torras. Outros falquejariam e fariam os estaleiros onde eram postas as torras para serem desdobradas em tábuas e vigas. Outra turma foi designada para fazer as tabuinhas. Naquele tempo não havia telhas de barro nem outro tipo qualquer. Papai transportava tábuas e vigamentos em sua carroça de tração animal, os bois. Moradores de outras colônias deram ajuda em transportar as tábuas.

 

O velho Max Metzler, colonizador de toda esta região de Porto União, admirava-se muito em ver o pessoal trabalhando tanto. - É muito bonito, dizia Metzler, ver o povo da colônia tão unido nas coisas que envolvem toda a comunidade.

 

E veio o natal de 1921. Celebramos o nascimento do Menino Jesus. Um pequeno rancho, que seria pequeno para os migrantes, servia de igreja. E nem estava bem pronto. Desde o início da construção estivemos em Maratá, embora morássemos a uma distância de três quilômetros. O velho Ambrósio Augusto Rücker, pai do Sr. Herbert ensaiava cânticos conosco. E cada domingo o ensaio melhorava.  Não era fácil, pois éramos gente simples, sem estudo para cantarmos tão bem. E na noite de Natal cantaram todos juntos <Louvado seja Deus> em alemão.

 

Mais tarde, começada em 1922, fizemos uma igreja maior, no alto, onde hoje esta o cemitério, O povo dizia que igreja tem que estar no alto de um morro, para ser vista de longe. Novamente cantamos <Grosser Gott wir leben dich - Deus eterno vós louvo > Desta vez a quatro vozes.

 

Penso que hoje, porque tudo está pronto, quase não cantam mais Louvado seja Deus. Porque está quase tudo pronto será que o povo pensa que não vão precisar fazer outra igreja? Bom seria lembrar do sacrifício do velho Rücker, do filho Herbert. Quanto tempo e paciência para ensaiar os cânticos a quatro vozes e a missa cantada (Kyrie Eleison, Christe Eleison). Eu pergunto se ir à igreja nestes setenta anos de trabalho e sacrifício não tem um grande valor.

 

Naqueles tempos muitos colonos moravam a seis ou sete quilômetros da igreja, às vezes sem saber quando é que haveria missa ou festa. Era de desacorçoar. Pensávamos que nós pioneiros nem viríamos a construir outra igreja nova.

4 - O sino

 

Pelos anos de 1925 ou 1926 a diretoria da igreja pensou em comprar um sino. Fez-se uma lista e foram alguns a cavalo de casa em casa pedir uma ajuda. Todos responderam sim! Mais uma vez houve a cooperação de todos. Adquiriu-se o sino que foi inaugurado em um domingo. O padre, frei Osmundo, fez uma belíssima prática. Fez ver que, a partir de então, a comunidade passava a ter um ar mais festivo e alegre com o badalar do sino ao amanhecer, ao meio dia e à noite. Apelou ainda à comunidade a ajudar mais um pouco, porque não estava tudo pago. E resolveu-se fazer um leilão. Aquele que desse mais, seria o padrinho, pelas primeiras batidas do ano e aconteceu que uma mulher ficou a madrinha do sino da igreja. E o povo todo sentia alegria ao ouvir as badaladas do sino no meio da mata virgem do Maratá. A inauguração do sino se deu aos sete de julho de 1925. A partir de então, pelas montanhas e vales espalhou seu alegre som, chamando os colonos para a Igreja.

 

O leiloeiro foi o Sr. Germano Grings. Assim começou a festa na procura de um viver feliz, um morrer mais santo e o afugentar das tentações do demônio, E meu pai deu de manhã 100$000 réis para mamãe e disse com ar de riso que era para ela ficar madrinha do sino. Depois da missa começou o leilão. Dez, vinte, cinqüenta!... e assim por diante até 750$000 réis que caiu para Jacó Lerner, meu pai. Foi o padrinho. E chegou vez da madrinha. Um, dois, três... num instante o leilão ultrapassou os 100$000 réis de mamãe. Daí, papai pegou a mãe pelo braço, tirou-a do meio do povo; caçoou um pouco dos seus cem mil réis e liberou-a para dar o lance final, mesmo que fosse bem alto. E o leilão foi subindo até chegar os mesmos setecentos e cinqüenta mil réis do padrinho. E assim mamãe arrematou o leilão e se tornou madrinha. O casal, meus pais, pagou assim um total de mil e quinhentos réis para serem padrinho e madrinha do sino. Veja-se que naquele tempo um quilo de porco custava quatrocentos réis. Isto significa que o leilão valeu quatrocentos quilos de porco gordo, menos cem réis. É assim que se faz crescer uma colônia nossa. Ainda vale lembrar que então um saco de milho custava 5$000 réis.

5 - A igreja atual

 

Em 1936 decidimos construir uma igreja maior. Ao planejarmos houve discordâncias e encrencas até. Mas no fim deu tudo certo, porque o povo estava acostumado ao trabalho. Começamos a fazer festas para arrecadar dinheiro para a construção. Eu e o Oswaldo Daubermann, à tarde atiramos com a ronqueira ou katzen kopf (um cilindro de ferro carregado com pelo menos cem gramas de pólvora e cacos de tijolo ou pedra - poderia ser chamado de morteiro).

 

Pareciam tiros de canhão que era o único meio de comunicação para as colônias vizinhas saberem que havia algum movimento novo. Daí o povo trazia porcos e outras prendas para o leilão da festa. Também duas pessoas que haviam casado já idosos e não tinham filhos, trouxeram uma vaca gorda ainda dando leite e João Fank deu um boi.

 

Escolheram-se pessoas para fazer o madeiramento de uma olaria, construída pelo sociedade, para fazer tijolos para a igreja nova. Outros assumiram o trabalho em uma pedreira. Cortavam pedras para os fundamentos da capela. Lembramos alguns nomes, entre outros: Wily Frensch, Wily Olbertz. Outros, como Augusto Orth, Albino Müller, João Schorr, Vicente Orth, Aloysio Orth e Rayrnundinho Lerner encarregaram-se de transportar o material, porque tinham carroças grandes, puxadas a boi. Ainda outros traziam lenha para a olaria.

 

Meu pai, já de idade avançada e cocho, não podendo mais ajudar fisicamente, colaborou ainda de muitas maneiras. Disse ao povo: - eu dou meu frete, eu dou meu carretão de uma junta de boi e uma parelheira de cavalos para a igreja. Assim fez: deu o carretão e mais o dinheiro de uma junta de bois que vendeu. E disse ainda: - Eu vou ao Porto comprar um lindo presente para a igreja, que servirá de lembrança, quando vos deixar um dia. Vocês todos estão de acordo, não é pessoal? E realmente adquiriu um cofre para se guardar papéis, documentos, etc. a prova de fogo. Presente que ainda nos dias de hoje deve estar ai na capela.

 

Assim, aos 12 de outubro de 1941 se lançou a pedra fundamental, e um jovem de nome Max Alves foi o padrinho da primeira pedra da parede. E a inauguração se deu em 1943. As pinturas foram realizadas por Max Hoeflenger, morador de S. Miguel. Sofia Baumert Schorr fez sua primeira Comunhão e diz que não havia ainda o assoalho pronto junto ao altar.

6 - Um pouco de minha vida pessoal

 

Em 1938 casei com Cecília Ana Orth, filha de José e Ana Orth. Sempre ajudei na comunidade. Em 1941 comprei terreno no lugarejo perto do rio Liso, já mais próximo de São Miguel. No dia 12 de fevereiro de 1942 mudei-me para lá e trabalhei com o Sr. Francisco Belau na construção de uma serraria para fornecer tábuas e madeiramento para a igreja de Maratá. Veio então um problema muito sério: dívidas. As mães e filhos dos colonos do Maratá querem viver. A contragosto nos obrigamos a interromper a construção da igreja. O padre, Frei Deodato, fez uma prática muito forte diante de nossa decisão de parar. Indagava: - por que não derrubam as paredes, se não querem terminar a construção?

 

Então houve uma pequena discussão entre os membros da comissão, enquanto bebiam seus tragos lá fora. Conversavam cochichando entre si. Chegando ao grupo ouvi um deles dizer: - O padre que vá mexer com a parede! Fomos nós que a levantamos e ele não tem o direito de falar assim, muito menos propor a demolição. E decidimos continuar a construção. E percebendo que meu negócio com a serraria ia dar certo propus ajudar com mais 1.000$000. Só que não tinha o dinheiro no momento. João Schorr afirmou: Raymundinho, agora quebrou o galho. Agora a igreja vai ser terminada. Mas se ele quiser pagar hoje, eu não recebo porque tenho só um homem que fornece madeira e a nave da igreja estava pronta e o telhado será feito em quatro horas. O pedreiro era o Sr. Henrique Weil e os carpinteiros José e Francisco Foerber. As telhas foram passadas de mão em mão e postas sobre o telhado.

 

Num outro dia apuraram-se mais uma vez. José Müller disse: - Raymundinho, agora tem muita gente trabalhando na igreja e faltam tabuinhas para cobrir a torre. Você tem cedro na serraria? - Não tenho, José. Então decidimos ir almoçar antes. Lá eu disse: - José, eu tenho alguns cedros derrubados em minha roça. Você vai comigo cortar algumas torras e Lindolfo Daubermann, que é carroceiro vai buscar os bois. José e eu fizemos as torras. Lindolfo as estaleirou e à tarde as carregamos no carretão. Tomamos depois um bom chimarrão. Fui até a serraria falar com o serrador e José falou com os carroceiros para virem no dia seguinte cedo para buscarem a madeira serrada. O Sr. Lindolfo que era meu carroceiro, e eu, depois da janta, fomos pôr os quatro bois no carretão e levamos as torras a serraria para serem serradas naquela noite mesmo. Durante o dia a sua força era usada na moagem de cereais. À noite era serraria e de dia moinho.

 

Quando me lembro até aqui trabalhei 53 dias com carro de boi, puxei 1240 metros corridos de vigamentos 10X15 cm de bitola. Prontos os vigamentos, carregamos 14 carretões e saímos um atrás do outro. Parecia um comboio de trem, tão comprida era a caravana. Era um trem sem fumaça. Em 1946 mandamos colocar o púlpito na igreja e muitos não sabiam quanto nos custou.

7 - A escola e sua redondeza

 

Já disse anteriormente que a escola não tinha assoalho. A pedido do professor Rücker, pai do Herbert, resolvemos construir uma nova escola. Rücker ofereceu a própria casa para dar aula enquanto se construía a escola nova. Em 1922 construiu-se assim a primeira escola nos matos de Maratá. Professor Rücker viera conosco do Rio Grande. O povo estava satisfeito com a nova realização.

 

A escola servia também de lugar de divertimento. Nela o povo se reunia para contar suas histórias e piadas. Professor Rücker fazia uma musiquinha e o povo se divertia, dançando de vez em quando. E o professor envelheceu servindo à comunidade.

 

Passados alguns anos, já em 1932 em nova reunião decidimos construir outra escola. José Orth, carpinteiro, fez o orçamento da madeira necessária. Os filhos eram desdobradores de madeira, outros se encarregaram de arrumar os cepos. Houve os que cuidavam do transporte e os que partiram as tabuinhas para a cobertura. Quem tinha carroça, ajudou no transporte. Os vigamentos compridos foram falquejados no rio Liso, em terras do Sr. Jacó Lerner. Os vigamentos tinham 12 metros e não cabiam num carretão só. Assim Canísio, Aloysio e Emílio Orth acharam uma solução. Desmontaram o carretão, usando só as rodas dianteiras. Amarrados sobre o eixo dianteiro, vigamentos foram arrastados até Maratá com os bois de Jacó Lerner, Raymundinho Lerner e Oswaldo Daubermann.

 

Assim, com a ajuda de todos construiu-se a nova escola. Nisso todos viam progresso do lugar. O professor Rücker sempre arrumava um tempinho para ensaiar cantos e também começou a ensaiar uma pequena banda de música. Assim, com muito sacrifício e esforço levantaram a colônia. Tudo se fez sem a ajuda da prefeitura. Em Maratá, o povo fez, ele mesmo, tudo o que precisava. As crianças que nasciam na maternidade, o médico, o dentista, tudo era custeado pelo próprio povo. Hoje com alguns reais de contribuição ao Sindicato de Trabalhadores Rurais temos benefícios. Naqueles tempos aconteceu, por exemplo, que Herbert Rücker e a esposa Lídia trabalharam até meia noite fazendo bolos. Depois da meia noite dona Lídia deu luz a um filho. E de manhã cedo Herbert teve que ir ao trabalho, deixando mulher e filhinho na cama. Todo sacrifício pela colônia.

 

Quando se cogitou, em 1940 da construção de uma igreja nova, seria de tijolo e coberta de telhas de barro. Seria uma obra para o futuro. Seria um templo mais bonito. Pensava-se nos filhos que casariam. Lembrava-se que o lugar já tinha bastante eleitores e, por isso, se projetava dentro do município. Portanto, construiríamos uma obra para o futuro que serviria por muitos anos.

 

Houve alguém que não gostou muito da idéia porque era um intruso. Nunca fizera coisa alguma pela colônia.  Escreveu um artigo e mandou a Porto Alegre para ser publicado num jornal alemão, o Volksblatt. Dizia que o povo de Nova Maratá queria construir uma nova igreja de tijolos, uma igreja bem grande. E criticava dizendo que não havia arrecadação para fazer tamanha igreja e que se fizessem, haveria muitas crianças desnutridas. Quando o jornal chegou ao Maratá criou-se um alvoroço. Uns queriam castigar, outros queriam expulsar o autor do artigo.

 

Os colonizadores do Maratá haviam saído do Rio Grande, onde haviam terras férteis, com boas colheitas de milho e de batatinhas. O que não diriam os pais e sogros desses colonizadores, ao lerem o artigo no Rio Grande? Iriam pensar que saíram das terras boas e se mudaram para Santa Catarina, onde passavam fome. Por isso mesmo uns queriam expulsar o desaforado, outros queriam surrá-lo. A única saída era ele se mudar daí para evitar um desastre. Afinal o povo de Maratá era muito enérgico e trabalhador. E quando a igreja estava pronta fizemos uma grande festa.

 

O homem que tinha sido expulso também apareceu na festa para ver a igreja. Entrou nela e começou a olhá-la e examiná-la por dentro. Isto mexeu com o brio do povo. Nervosos, alguns queriam até entrar na igreja e tirar o indesejado para fora. Outros impediram, dizendo que na igreja católica pode entrar e sair quem quiser desde que se comporte bem. Por enquanto ele só nos prejudicou com a língua. Mas alguns não se fiavam nele, porque parecia que andava com algum capanga. Suspeitavam de muitos estranhos que vieram à festa. No início da missa o padre fechou a igreja.

 

Eu nem pude acompanhar direito a missa porque meus pensamentos estavam lá fora. É preciso lembrar que se viviam os anos, durante a segunda guerra mundial. Aqui no Brasil foi proibido severamente falar alemão. E nesta colônia, praticamente só de alemães, havia é claro, forte preconceito contra os brasileiros, onde se incluíam especialmente negros, mulatos e mesmo toda pessoa que não fosse alemã, nascida no Brasil. Houve neste dia muitas brigas e pancadarias entre os alemães e os ditos brasileiros. Mas no fim deu tudo certo. Nada de mal aconteceu, quer dizer, houve muitos machucados, mas nenhum morto.

8 - O rabo de tatu

 

Riograndense, com chicote de argola pesada o homem que acabou com a cabeça cheia de galos. Tudo aconteceu num belo domingo ao meio dia. Alguns rapazes passeavam na estrada e se encontraram com um grupo de moças. Fizeram amizade e começaram a conversar sobre o lazer da semana. Contaram algumas piadas e um pouco de gavolices. Um dos rapazes se gabava de ser um bom filho porque não bebia nem fumava. Afinal, não tinha vício algum. Uma das mocinhas se dizia muito educada porque a mãe sempre a aconselhava como devia se comportar. Advertiu então um dos rapazes que a estrada não era o lugar mais apropriado para conversar. Seriam taxados de fofoqueiros. Um dos rapazes sugeriu por isso que fossem à casa de um colono próximo. Era fabricante de bom vinho. Sentariam num gramado muito bom à sombra de árvores.

 

Dirigiram-se então ao lugar combinado e pediram vinho. Tomaram uma a uma as garrafas de vinho e depois passaram aos litros. Beberam até a hora de irem para casa. E o vinho começou a fazer efeito. Caminhavam conversando, gritando e fazendo algazarra. Nessas condições encontraram dois vizinhos. Um deles trazia um rabo tatu com argola grande. Passaram a conversar com os rapazes e as mocinhas. E aumentava o efeito do vinho. E um dos vizinhos disse ao outro: minha filha não é nenhuma leviana assim! Ofendido o outro tomou do rabo de tatu e desceu-lhe a argola na cabeça. O que apanhou chegou em casa e disse a mulher que pusesse álcool na sua machucadura. A mulher examinou a ferida e exclamou: - Não! Não! Você tem vários galos da cabeça e não temos um pingo de álcool em casa. - Então põe vinagre, mulher! Ai, ai, como isto me dói. - Claro que dói, pois tua cabeça parece que criou outras cabeças... Isso não pode ficar assim. Você tem que ir à delegacia fazer queixa, porque os galos estão crescendo cada vez mais. No dia seguinte o ferido foi ao delegado que lhe perguntou por que estava chorando. - Sr. delegado, veja quantos galos tenho na cabeça! –Sim, estou vendo. Isso não se deve fazer! É um crime. Vou mandar uma intimação para este sujeito e vocês dois vêm aqui dar depoimento.

 

Voltando a Maratá o queixoso mandou entregar a intimação ao vizinho. A mulher deste, muito curiosa, perguntou ao marido o que o delegado havia dito. – Disse que os galos vão doer muito e mandou esta intimação para ele comparecer na delegacia, que o delegado quer dar-lhe uma boa lição, porque coisa assim não se faz. É um crime.

 

E o vizinho do rabo de tatu ficou a imaginar como seria na delegacia. A noite toda não dormiu. E não havia testemunha a favor dele. O agredido deu seu depoimento. E o delegado indignou-se com o que acontecera, segundo o relato, o agressor poderia ser processado. Diante das palavras do delegado, o agressor pediu licença e deu sua versão: - Olha delegado, sou um homem muito nervoso, ainda mais quando acontece uma coisa dessas na minha picada. Sempre levo um rabo de tatu comigo para me defender daqueles que me ofendem. Pior quando este vizinho atacou minha filha, tratando ela como meretriz ou leviana. Isso meus nervos não agüentaram. Dai, eu desci o rabo de tatu e ganhei um acesso de nervos. Quando vi que o homem não se defendia fiquei mais louco ainda, porque o homem sempre enfiava a cabeça embaixo do rabo de tatu. E quando me dá um acesso eu não posso parar de bater até que passe o acesso de nervos. Assim é que foi, Sr. Delegado. O delegado advertiu-nos: - briguem mais uma vez e ponho vocês dois na cadeia!

 

E com esta resposta os dois voltaram para casa. O machucado pediu à mulher que pusesse mais vinagre na machucadura. O agressor se vangloriou diante da mulher, dizendo: - Bobo a gente não deve ser! A gente dá um jeito!...

 

9 - Ano de 1921-1938           

 

No mês de setembro viemos do Rio Grande do Sul para Nova Galícia e de lá paro Maratá, onde Jacó Lerner Sobrinho foi o primeiro comprador de terras por isso se chama Colônia Maratá. Nós éramos sete famílias. Em dezembro de 1921 meu pai me levou a primeira vez para Porto União. Arrumamos mais um cavalo e uma broaca e fomos fazer compras para nós e nossos vizinhos. Esta foi a minha primeira viagem para o Porto.

 

De lá fomos ao moinho e serraria do Verlo que ficava no Tamanduá, vizinho da Galícia e São Miguel. Ia duas a três vezes por semana depois. Foi nestes dias que chegaram as filhas de João Orth e os Foerber.

 

Uma égua que nós tínhamos chamava-se Maria. Um dia empacou e não havia quem a tirasse do lugar. Papai me disse:- Raymundische, monte você uma vez e tatu nela! Quero ver quanto tempo agüenta o rabo de tatu. De tanto que o animal apanhou... é que Raymundo gostava... e o Raymundo gritava: - Sai da estrada! Hurra! E assim nós fomos a todo vapor. E assim passou-se um ano. E cada vez que montava, o tordilho empacava. Até um dia o Henrique Dobler me chamou de longe: - Raymundo, os sapos não têm cauda, puxa vida!

 

Papai comprou uma junta de bois de canga que ele pôs na carroça e diante deles uma parelha de cavalos. Chamou-me: - Venha cá, Raymundo tchê! E me fez montar no tordilho. Assim amansamos os bois de bonitas orelhas e os cavalos de belas crinas para puxarmos fretes. Transportamos tábuas da serraria dos Werle do rio Tamanduá até Maratá, até os Rehme, os Olberts, o Peter Ruting... e tantos outros, lá naquele buraco, onde o diabo perdeu as botas traseiras... De lá fomos até os Kreling, carregamos erva-mate e muita batatinha de São José do Maratá.

 

No ano de 1927 fizemos uma viagem para comprar porcos para os Kerber. Trouxemos açúcar e trigo. Sempre tínhamos problemas com os cavalos. Os cavalos do Henrich não puxavam mais. Os cavalos do Henrich Vogel empacavam. Numa ocasião dormimos debaixo de um pinheiro na propriedade de Pedro Machado. Em outra ocasião dormimos molhados num rancho coberto de feno. Nessa ocasião o velho Echtenhofer me chamou e disse:- Raymundinho venha cá e faça ligeiro um fogo. Pus uma chapa em cima do fogo. Depois me deitou sobre ela, me massageou até me enxugar. Enquanto isso, ele cantava “Minha Maria”, porque ele tinha uma filha muito bonita que se chamava Maria.

 

Melhorando o tempo, voltamos do Rio dos Pardos para casa. Encontramos o pai doente. Em outra oportunidade fretamos tábuas de São Miguel. Nessa viagem papai também ficou doente. Não tive outra alternativa: arrumei-o, deitado sobre tábuas da carroça, até chegar em casa. E com tudo isto perdi meu tempo de aulas. Tive só um ano e meio de aulas. Mas isto não faz mal. Não culpo meu pai, porque este sacrifício todo era no começo do Maratá.

 

No ano da revolução de 1924 íamos a Porto União com uma carga de milho. Na altura do Pintadinho encontramos carroceiros que voltavam. Avisaram-nos que seria melhor não irmos porque poderíamos ser presos. Perguntei a um morador do Pintadinho se podíamos descarregar o milho na propriedade dele. Disse que sim, mas que não podia assumir qualquer responsabilidade. Passados alguns dias, papai mandou-me a Porto União ver se os revolucionários já se haviam retirado. Fui até o Maneco Leão, no Pintadinho. Informou-me que os homens brabos de espingarda já se tinham retirado.

 

Dois anos antes da revolução fiz minha primeira comunhão. Era o dia 23 abril de 1922. Éramos oito crianças. Foi o padre Nicolau Schaan quem nos deu primeira comunhão. Durante 14 anos eu atirei a ronqueira nas festas de Maratá, São José e mais tarde também em São Miguel. Por 15 anos batoquei o sino aos domingos, dias santos e enterros. No ano de 1933 num só dia, sexta-feira maior, dei 19 badaladas no sino. Mas por que, se não se costumava tocar sinos neste dia da morte do Senhor? - O papa Pio XI declarou este dia para lembrar os 1900 anos da morte de Jesus. Devia-se assim, dar 19 badaladas, cada uma representando cem anos. E eu tive esta honra.

 

No ano de 1938 casei com a filha de José Orth e me mudei para o Maratá. Depois de três meses comprei uma carroça puxada por cavalos. Puxava frete de vigamentos, tábuas e tijolos. Como as estradas eram ruins, com tantas pedras que não dava para contar, vi que carroça de cavalos não dava. Comprei uma junta de bois e voltei a fretear. Morei na primeira morada por quatro anos. Em 1942 mudei-me para o Rio Liso. Passei a negociar madeira com Sr. Rücker. Transportei madeira para as igrejas de Maratá, São José e São Miguel com carretão de bois e carro puxado por cavalos. Nesta lida me acompanhou a minha querida. Primeiro na infância, depois como namorada e noiva, finalmente como esposa.

10 - Outras Recordações

 

Numa ocasião o pai me chamou e disse que fosse até o Rücker. - Lá perto mora o Schneider. Ele tem um forno. Leve farinha de trigo para a tia assar uns pães. À tarde você traz os pães. Quando voltava para casa começou a chover torrencialmente. Com os pães às costas, apressei o passo e caí numa poça de água. A muito custo me levantei. Os pães ficaram em pedaços. O pai improvisou então uma mesa. Sobre ela colocou os pães. A mãe cozinhou uma panelada de feijão, pois éramos dezesseis pessoas. Esfregaram-me banha de coati no lombo machucado. Assim almoçamos feijão com farofa de pão...

 

Meu pai resolveu construir um forno também. Para tanto o Neco nos ajudou a trazer pedras do Rio Bonito, há uns duzentos metros. Papai fez a arrumação do forno com madeira roliça. Sobre a madeira pôs barro e sobre este uma camada de pedras. Sobre as pedras, mais uma camada de barro. Quando o barro estava seco, acendeu a armação. Depois de queimada a madeira, estava pronto o fomo. A mãe fez o fermento e na manhã seguinte haveria pão para as crianças. Repentinamente o fomo desmoronou com o pão dentro. Os velhos ficaram desanimados. A mãe, desesperada, correu para dentro de casa. O pai a seguiu e a consolou: - Não faz mal - disse - vai buscar a panela grande, ponha fubá na água quente. Cozinhe uma polenta como os Rampinelli. Assim teremos alguma coisa para comer amanhã. E a mãe já se ria, dizendo: - No tempo de Adão e Eva era melhor. Havia maçã, pêra e também tangerinas das graúdas, mas eram muito azedas para a gente velha!

 

Na verdade eram coisas trágicas que às vezes aconteciam. Mas Deus abençoou trabalho e o sacrifício que os velhos viveram. Papai comprou, certa feita, um cavalo. Era forte e se chamava Dupiano. Após três meses na mão do papai, Dupiano se machucou. Não sarou mais e foi preciso sacrificá-lo para não sofrer mais. O jeito era comprar outro. E assim fez, e comprou mais uma vaca do pequeno Gomes. Era uma barrosa, de tetas grandes e grossas como um salame rosa. Gomes disse que dentro de três semanas a vaca daria cria. Esperamos oito meses e por azar, nasceu um terneiro morto. E a vaca não deu leite nem para as crianças.

11 - A Jacutinga

 

Meu pai foi fazer um forno (agora já dominava melhor esta arte) no Oswaldo Daubermann. Meus irmãos e minha irmã tivemos que chamar papai. No caminho levantou vôo uma ave e atravessou a estrada. O Bertolino Lerner, pai de Pe. Ervino Lerner, tinha espingarda pica-pau de dois canos. Era a espingarda para caçar porco do mato (cateto) de meu avô João Lerner. Meu irmão disse: - Vou dar um tiro neste passarinho. E, pum!... O pássaro caiu. – Vamos levá-lo para mostrar ao pai. Olha que passarinho grande caçamos! - Isto é uma Jacutinga, vai dar uma boa sopa respondeu o pai. Limpamos a ave. A mãe tomou carne, pôs fubá na sopa e cozinhou bem. Que sopa gostosa!

 

 

Os porcos de mato nas terras de Jacó Lerner

 

Numa tarde papai resolveu dar uma volta. Tomou do calibre 16 e se dirigiu a uma roça de milho. Quando chegou no topo do morro, escondeu-se atrás de um toco e já escutou os grunhidos de uma manada de uns oito porcos do mato. Quando a manada entrou na roça de milho, saiu um tiroteio. Uma porca desceu o morro vagueando e o pai fez fogo com a 16, os cartuchos estavam carregados até à boca. Em casa a velha prima dizia: - José, José! Os Lerner vão receber visita do Rio Grande! Escute como estão estourando foguetes!

 

 

Os catetos

 

Numa noite saíram os porcos de mato no terreno de José Orth. Os vizinhos reuniram todos. Era o Reynold Schmidt, pai de frei Leo, o Krohmann e outros. Fizeram uma espera. Já era alta noite e os porcos vinham chegando com grunhidos. Ao saírem do mato deu-se um grande tiroteio. Abateram só um porco, pois era muito escuro. E veio a discussão. Cada um se dizia dono do porco. Para encurtar: o Krohmann disse que era dele porque acabara de matar o animal com a vareta da espingarda. E levou o cateto...

 

 

A caçada de anta

 

Passados alguns anos de caçada do porco do mato, lembro que meu cunhado José Müller era um exímio caçador de veados e catetos, mas nunca matou uma anta. Ele havia casado em 1924 e morava em frente à propriedade de papai e num dia bonito, bem cedo, coberto de cerração, foi caçar num banhado, em terreno de Miguel Weber, beirando o morro e atravessando o córrego Bonito, chegou na barranca do Rio Liso. Num poço grande estava parada uma anta grande, limpando a fuça. Mas até hoje não se sabe o que aconteceu. Quando o caçador chegou em casa, contou à esposa Paulina que havia uma anta grande... mas não se soube onde foi parar... Será que derramou lágrimas?...

12 - A enchente

 

Um dia fomos ao Porto. Ao chegarmos no cruzo da linha da estrada de ferro, deparamos com uma grande enchente. Damos meia volta na carroça e procuramos o lado oposto do banhado. Lá também para azar nosso, havia enchente. Tentamos passar pela água que dava um pouco acima do cabeçalho da carroça, mas não conseguimos. Antes ainda de voltarmos ao Maratá os primeiros a entrar na água foram Jorge e Arlindo Henrich. Meu irmão Edvino e eu, que éramos carroceiros, apeamos da carroça e entramos na água para desengatar o rosilho.

 

Queríamos desencalhar outro carro atolado. Alfredo e João Vogel ficaram sentados na carroça. De repente vem João Orth a cavalo e entra a toda disparada na água. Ficou pálido, quando ele e seu pangaré quase sumiram na água. João Orth ficou sentado com o traseiro dentro da água. Quando ele olhava para a correnteza da água ficava tonto. Desceram-no do cavalo e o colocaram dentro da carroça, ainda bem tonto. Por causa da enchente João Orth e Miguel Vogel ficaram horrorizados. Os cavalos não puxavam mais. Jorge Henrich também fez uma cara de quem comeu e não gostou. Lamentava-se muito. Quando quis se acomodar na carroça, escorregou e caiu sobre a grade da carroça e lá se foi para as águas sujas do Rio Iguaçu. A água chegou até seu pescoço. Miguel Vogel tomou o rabo de tatu de João Orth. O cavalo pangaré ainda estava sentado dentro da água, meio metro mais ou menos. Agora desce o rabo de tatu no cavalo, disse João Orth. Com a talada que deu, as águas espirraram por todo lado, uma altura de mais de dez metros. Parecia uma chuva grossa.

13- O alambique

 

Transportamos certa ocasião um alambique para o velho Werner Rücker. Fizemos isso com a ajuda de José Schorr. Tivemos que tirar a grade da carroça e colocar travessas para assentar o alambique e a peça era bem grossa. Segunda-feira choveu torrencialmente. Mas carregamos a carroça e partimos debaixo da chuva mesmo.

 

Durante a viagem José Schorr repetia: Ihú! Zaino! Saindo de um buraco caímos em outro. Isto aconteceu no mesmo dia em que caiu um raio na igreja de São Miguel. Assim chegamos até o morro dos Wendels. O velho Rücker mandou o Leopoldo Kerber ajudar-nos com uma junta de bois. Chegamos em casa ainda debaixo de chuva.

 

 

O rádio

 

Nós tínhamos em média duas a três missas por ano. Quando o padre vinha a Maratá mandavam um aviso ao senhor José Orth e este mandava o aviso até nossa residência. Uma vez, como o aviso chegou à noite, peguei minha 16 e os cartuchos carregados e subi o morro perto do Bonito. Lá descarreguei os cartuchos que faziam tremer as árvores e os macaquinhos despencavam como frutas... Abriram-se então as janelas e portas das casas, com velas acesas. Gritei para o vale: - O padre vem amanhã e temos missa cedo! E daí me desliguei, pois banquei o rádio! De noite até os Freysleben do José ouviram os tiros e vieram à missa de manhã, porque à noite o Raymundinho chamara para a missa!

 

 

A ronqueira e as abóboras

 

Nas festas de Maratá, Oswaldo Daubermann e eu atiravamos com a ronqueira (um cilindro de ferro fundido, socado com pólvora e cacos de  tijolo ou pedregulho). E o público reclamou porque não queria que soltássemos os tiros perto da igreja, pois não podiam acompanhar a missa, tamanho era o estrondo, ensurdecedor mesmo. Fomos então a um alto, onde havia um capão de mato. Lá a prima Maria Vogel tinha uma pequena lavoura de milho, feijão e abóbora. Lá firmamos nossa ronqueira e a carregamos para atirar, conforme o andamento da missa. Pusemos a ronqueira na direção da moradia do Reynold Schmidt. O eco dos tiros respondia em diversos lugares até que desaparecia nos vales. A ronqueira era carregada com cem gramas de pólvora e para bucha, moía-se um tijolo e era socado com uma vareta de dois quilos. Imaginem o tiro que dava. Enquanto eu fazia estourar a ronqueira o Oswaldo Daubermann descia para tocar o sino.

 

Uma vez aconteceu um desastre com a ronqueira. Eu não tinha mais pavio e carregamos sem pavio. Esquentamos um pedaço de arame e o encostamos no buraco destinado ao pavio. E, pum! Saiu o tiro. E eu estava a dois metros e meio e pensei na abóbora da roça da prima. Que buraco não há de ter feito naquela abóbora. Nada disto. Pior. A abóbora sumiu. A metade bateu em minha barriga e eu caí pelo impacto e talvez ainda pelo susto do estrondo. Outros pedaços se espatifaram em minha gravata, em meus olhos e ouvidos. Por isso nem percebi o tiro. E a bela da abóbora da prima Vogel se foi em mil pedaços.

A prima Maria Vogel tinha um cavalo que se chamava Malek: E a abóbora era a ração do Malek. Aliás, no cargueiro do Malek as abóboras eram transportadas para casa. Terminou a missa. A banda de música tocou uma marcha e nós descemos ao salão de baile. Era costume colocar-se uma garrafa enfeitada (kerbflasche) para leilão antes do meio dia. Alguns amigos e eu arrematamos a garrafa. Tínhamos por isso o direito de dançar a primeira parte da dança. Meus amigos foram dançar. Mas eu, envergonhado não quis dançar. Mas lá no canto do salão vi algumas moças. E lá me fui e as paquerei. Fiquei com coragem ao ver uma moça vir ao meu encontro com ar de riso. Era uma dos Vogel. Então saí dançando uma valsa com ela... E dançando, caímos numa sujeira danada. E ela perguntou: - Que porcaria é esta? - Não é porcaria! É a abóbora que estourou em mim. E contei a ela a história da ronqueira. E a Alma Vogel reconheceu que isso não era nada. E me disse - Você, põe a camisa da festa passada, que é um espetáculo de bonita. E assim eu fiz. E ao meio dia, quando entrei no salão dando vivas ao kerb e a música tocava fui tirar a Alma para dançar. E ela riu, dizendo: - Veja, não adianta nada! O kerb continua. E a Malek amanhã dou uma outra abóbora. Esse foi meu maior desastre nos 14 anos em que fui atirador de ronqueira.

 

 

Outra com a ronqueira

 

Aconteceu-me outra com a ronqueira. Parece que foi no dia de Pentecostes. A diretoria resolvera fazer uma festa. Eu fui encarregado dos tiros de ronqueira. Na véspera, à noite, carreguei as ronqueiras e as pus em frente à igreja. Coloquei o pavio e pus fogo. O cavalo Malek estava pastando no potreiro, ao lado. Não esperava pelos tiros e levou um susto muito grande. Caiu e gemia. Uma pedra estava em baixo de sua barriga. Olhava ao redor, à procura do moleque que lhe dera tamanho susto...

14 -1938 - O tordilho e as folhas de Palmeira

 

Eu me casei com Cecília, filha de José Orth. Compramos terras nos fundo do Maratá, no lugar chamado São Francisco, a mais ou menos sete quilômetros da igreja. Sempre íamos a pé aos domingos à reza do terço ou à missa, mesmo durante a semana, sempre que o padre chegasse. Comprei rifa de um tordilho de Daniel Koech. Ganhei o cavalo na rifa. E seu pai lhe deu um sião de presente. Assim nós podíamos sair a passeio a cavalo. O andar do cavalo era pura marcha. Pertencia antes a uma Sra. Werle, moradora do Tamanduá, onde havia uma serraria e um moinho. Se era pouco o pasto que eu buscava na roça, cortava folhas de palmeiras e as carregava na cangalha.

 

Assim, carreguei certa ocasião dezesseis folhas de palmeira e puxava o animal fazendo um cigarro de palha, enfrentando uma estrada cheia de buracos. Num destes, o animal pulou por sobre um buraco. Com tanta folha no lombo que só aparecia a cabeça do cavalo, este se assustou com a carga e sumiu na poeira. E o Raymundinho seguiu poeira até o Bertolino, depois seguiu até o José Orth, o vale do Ludwig, do Reynold Schmidt, até o povoado e nada do tordilho. Finalmente veio um amigo conduzindo o cavalo, perguntando: - O que aconteceu, Raymundinho? - Acho que nada. Respondi. Só que o cavalo disparou perto da morada do velho Kreling. E acrescentou o amigo: - Nós vimos o animal assustado. A mulher recolheu as crianças para dentro de casa começou a rezar o rosário. Segundo ela, vinha descendo uma coisa horrível. Depois disseram a ela que não tinha perigo, porque o horror tinha descido até a igreja e depois havia subido para a banda do Nicolau Ludwig. Encontrei o Ludovico e perguntei o que acontecia. Disse que quando o cavalo deu a volta naquele mato grande, começaram a cair às folhas. Corcoveou bastante e caiu o resto das folhas de palmeira na valeta. Em seguida dei uma chegada na casa de meu sogro. Ele estava na beira da estrada e pedi uma explicação. E o animal ainda deu uma volta na casa e cozinha. E se mandou. Cheguei em casa já noite. E a mulher perguntou se havia trazido as folhas de palmeira. Respondi sim e não. Como já era noite, tratei de fazer antes um chimarrão.  Contei então a Cecília tudo que se passou com o tordilho. Todos riram, porque acharam graça. No dia seguinte, bem cedo, peguei o rosilho e fui recolher as folhas.

15 - O custo da igreja de Maratá

 

Foram gastos 104.000$000. Eram cerca de setenta a oitenta as famílias sócias da comunidade. Uma colônia de terras de dez alqueires, ou seja, 24.000 m quadrados, valia no Maratá 1.500$000. Quero dizer que a igreja custou 70 colônias de terra. Quase em média uma colônia por família. Todos eram livres em contribuir com quanto pudessem. O valor de 1.500$000 era o de uma colônia com mata virgem. E pergunto: - Se hoje cada associado devesse dar um valor tão elevado, quem o faria? Uma vaca de leite valia 150$000. Não existia Instituto de Previdência Social, nem assistência médica, que oferece assistência gratuita de um parto, por exemplo.

 

Hoje a mulher agricultora tem direito ao auxílio maternidade, ganhando um salário por quatro meses, a partir do oitavo mês de gestação. Antigamente nada disto havia. Melhor não falássemos tanto em crise. Falemos da melhoria de vida, maternidade assistida, conforto. Outrora não se ia de ônibus para Porto União. Ia-se no lombo de um animal ou em carroça. O almoço não era em restaurante, mas dois pães e duas bananas levadas junto. E o nosso boião que funcionava todo domingo não consumia dinheiro? O nosso rádio nada custava? A bateria do rádio também era recarregada. Hoje temos a televisão com menor consumo de energia. Ao menos mais barata. Olhemos quarenta anos atrás. O que nossos pais tinham na vida em bens, em conforto? Mas viviam satisfeitos.

 

Hoje temos a aposentadoria do trabalhador rural, mesmo que pequena. Temos bancos para financiar a produção. Há quarenta anos atrás debulhávamos o milho com as mãos. A maria-preta virou em uma cozinha pintada. A maria-fumaça virou em um cômodo fogão a gás. A miserável luz de querosene foi substituída pela luz elétrica. A água encanada vem de um poço de, às vezes, cinqüenta metros e uma manga traz água a mais de mil metros; a latrina do fundo do quintal deu lugar ao sanitário dentro de casa; o poço do rio, onde se tomava banho, deu lugar ao chuveiro elétrico. A banca de tábua deu lugar ao sofá. Temos hoje o triturador movido a motor elétrico.

 

O transporte de nossa produção, feito antes em carroça de boi, muito vagaroso, hoje é rápido para ser entregue ao comprador. Encosta-se um carro pequeno na mangueira e depois se passa o porco ao carro grande. E dentro de dez horas o animal já está em São Paulo. Falando em crise, o comprador não gosta de comprar pouco, como quatro a seis cabeças. Ele prefere comprar uma carga fechada, pelo menos, digamos, cinqüenta a oitenta cabeças. Antigamente nem sempre achávamos mercado para nosso milho. Hoje temos até falta de milho em nossa região. Em vez de criticar, plantar mais será a solução.

 

Quem anda só criticando é prejudicado no sentimento de seu serviço. Fica até doente. Anda com peso no corpo. Com isso perde o apetite, a vontade de trabalhar perde a cabeça para dirigir os próprios movimentos. Acho que não adianta querer tratar do vizinho se eu mesmo estou doente.

 

Graças à nossa prefeitura que assinou convênio com o EPAGRI temos orientação gratuita para o plantio. Até as estradas melhoraram em noventa e cinco por cento. Onde antigamente se tinha medo de passar com carroça de boi, em meio às pedras ou atoladores ou alagados, o fusca vai, graças à nossa prefeitura, que melhorou as estradas. Nesta altura em que estou escrevendo (1978), estou andando com meu carro motorizado, onde, desde 1921 até 1978, andei por buracos para cima e para baixo com carro de boi. Não encontro mais buracos, não acho mais enchente nas estradas. Com certeza, se for provado, como se fala, que o astronauta Carlos Konrad nasceu em Maratá já teríamos até estrada asfaltada. Não tenho dúvida que o astronauta nasceu mesmo no Maratá. Temos hoje uma transportadora de leite, funcionando desde dia 7 de agosto de 1976, graças à Cooperativa de Leite de Curitiba Ltda. (CLAC) que se ofereceu para comprar o leite do interior, em distâncias de até trinta a quarenta quilômetros. Outrora o colono tirava a nata por cima e o resto dava aos porcos. Hoje todo leite é vendido. É dinheiro que chega à colônia.

 

Durante trinta anos tirei do mato madeira com machado, torras de um metro a um metro e meio de diâmetro. Depois com o vai-e-vem nós gastávamos uma hora com vai-e-vem e batendo cunha e hoje meu filho sozinho com moto-serra não leva o machado e nem cunha e em poucos minutos está tudo feito. E em lugar do boiadeiro que se judiava, vem o trator e guincho e, para terminar faz funcionar a máquina e a tora vem arrastada por cima das pedras e árvores e já está no estaleiro. E com o tempo, tudo mudou em vez de muque-feijão do tempo do Raymundinho se tem um trator ao lado de um caminhão e tudo se carrega em pouquíssimo tempo e sem se fazer força nenhuma.

 

A crise aqui em casa é vista por um cartaz que diz: <Não fale em crise. Trabalhe. O trabalho honesto realiza o homem e engrandece a nação>. E o criticador só perde tempo. A vida agitada traz a critica hoje em dia. Afirmo porque não posso tratar o próximo se eu mesmo estou doente.

O Autor:

 

Theobaldo Raimundo Lerner, nascido a 05/12/1911, tinha 9 anos em 1921, quando chegou a Nova Galícia, município de Porto União, em companhia de seu pai, Jacó Lerner e mais 51 pessoas.

 

Do trem que acabava de chegar à estação, 18 pessoas eram da conceituada família Lerner, (Jacó Lerner, Raimundinho, etc.). Três eram da família Dobler, 10 da família Orth, (Cecília, etc.) sendo que 5 eram padres e 2 freiras. Quatro, eram da família Rücker... Acompanhavam a comitiva, os negros Alexandre, Luiz e Bento.

 

Era o mês de setembro, o trem vindo do Rio Grande do Sul, aproximava-se agora da estação de Nova Galícia, destino final para aquelas pessoas. O que traziam elas em seus corações? Curiosidade? Ansiedade em descortinar a nova vida que iriam começar? O que se passava na cabeça do líder da comitiva, o poderoso e amigo Jacó Lerner, responsável direto por todas aquelas pessoas, que se apoiavam nele?

 

Da estação vinham os murmúrios dos passageiros que se movimentavam incessantemente em direção ao trem, uns vindo em busca de parentes e amigos, outros tentando embarcar para outras cidades distantes.

 

À medida que chegava o trem na estação, as batidas do coração daquelas 53 pessoas pulsavam mais depressa. Sabiam que os aguardava um futuro incerto, mas valentes e determinados como sempre foram, estavam agora próximos de novos acontecimentos e os seus corações, cheios de esperança e confiança na nova terra. A sorte estava lançada, desde o momento em que decidiram sair das terras onde moravam, em São Pedro do Maratá, no município de Montenegro, no Rio Grande do Sul.

 

Deixavam para trás uma localidade já bem posta, ali se podia cultivar bem o trigo, o café, o feijão, o arroz e o milho.

 

Mas havia um sonho, a aventura, ou o vislumbre de um viver melhor...

Mais União

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01/06/2013 12:06